Valerá a pena insistir na duplicidade de critérios do Bloco de Esquerda? No entanto, o espectáculo nunca parece deixar de surpreender. Na última semana, o assunto foi a violência doméstica. A doutrina do Bloco era clara: todas as denunciantes têm de ser apoiadas, todos os suspeitos devem ser desde logo vexados e castigados. Mas eis que um deputado do Bloco é acusado de espancar a companheira. A partir desse momento, passou a prevalecer a “presunção de inocência” e o denunciado tornou-se a “vítima”, e como tal com todo o direito a ser acarinhado e até festejado.

Não é, claro, a primeira vez que uma reviravolta destas acontece. Na especulação imobiliária, também era uma vergonha fazer dinheiro com a compra e a venda de casas. Não havia desculpa para a especulação sobre um “bem essencial”. Até ao momento em que um vereador do Bloco foi apanhado a realizar mais-valias de milhões com edifícios do Estado adquiridos, aliás, com empréstimos do banco do próprio Estado. A partir daí, começaram a valer a lei e o mercado: se não é ilegal, tudo está bem. No discurso de ódio, a mesma coisa. Era inaceitável qualquer linguagem que pudesse ser interpretada como um incitamento à violência. Até ao momento em que um assessor do Bloco apelou explicitamente à “morte do homem branco”. Nesse instante, todas as  expressões, por mais violentas, tornaram-se metafóricas e perfeitamente legítimas no debate público.

Nada disto é uma originalidade da extrema-esquerda em Portugal. Na Grã-Bretanha, o Socialist Workers Party, que corresponde à componente trotskysta do Bloco de Esquerda, também se celebrizou em 2013 por ter encoberto acusações de assédio sexual e de violação contra o seu principal dirigente. O SWP fez tudo para impedir as denúncias de chegar à polícia porque, segundo explicou, não desejava de modo nenhum “cooperar com o sistema burguês”. Como aparentemente terá acontecido com o recente caso de violência doméstica no Bloco de Esquerda, onde terá vigorado também um “pacto de silêncio” para proteger o dirigente acusado. É verdade: o líder do SWP acabou por demitir-se, tal como o deputado do Bloco acabou por desistir da candidatura à câmara municipal de Gaia. Mas apenas quando a publicidade começou a danificar a reputação do partido. Foram afastamentos e desistências por uma questão de relações públicas, não por uma questão de decência.

Que se passa aqui? Hipocrisia? Não, não se trata disso. O problema do Bloco não está no facto de ter gente gananciosa ou violenta entre os seus activistas, porque isso haverá em todos os partidos. O problema do Bloco também não é simplesmente não praticar aquilo que exige aos outros, como Frei Tomás. É que Frei Tomás, apesar de tudo, acreditava no que pregava. O Bloco, não. O problema do Bloco é no fundo não levar a sério, nem a violência doméstica, nem o “discurso de ódio”, nem a especulação imobiliária. Tal como não leva a sério o racismo, a homofobia, ou a pobreza. Porquê? Porque o objectivo do Bloco não é corrigir, nesta sociedade, esses males. O objectivo do Bloco é destruir esta sociedade, não é melhorá-la, e portanto o Bloco apenas usa essas questões num sentido instrumental. Não as atribui a comportamentos individuais, mas ao “sistema burguês”, isto é, à democracia representativa, à economia de mercado e ao Estado de direito. Servem-lhe para tentar afastar do “sistema” aqueles que, natural e justamente, se indignam ou sofrem com essas situações. Por isso, qualquer caso concreto só interessa ao Bloco no seu aspecto “sistémico” (como na expressão “racismo sistémico”), isto é: na medida em que pode ser utilizado para mobilizar as opiniões contra o “sistema”. É aqui que começa a imoralidade do Bloco: ao servir-se cinicamente da pobreza ou do racismo para subverter o “sistema” que, na história do mundo, mais contribuiu para os ultrapassar.

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A isenção de responsabilidades que o Bloco de Esquerda em Portugal ou o SWP na Grã-Bretanha se atribuem a si próprios faz, deste ponto de vista, todo o sentido. Para o Bloco, a violência doméstica, o “discurso de ódio” ou a especulação imobiliária não são problemas dos indivíduos, mas do “sistema”. Por isso, os que lutam contra o “sistema burguês” até podem ser pessoalmente susceptíveis ao ódio, à violência e à ganância, mas estão redimidos pelo facto de, apesar de lapsos pessoais, combaterem o que importa: a suposta fonte “sistémica” do ódio, da violência e da ganância. Um inimigo do “sistema” terá sempre salvação, por mais lamentável que seja o seu comportamento; ao contrário, um defensor do “sistema” será sempre condenado, por mais impecável que seja pessoalmente. É por isso que um terrorista das FP-25 pode, sem arrependimento, ser candidato e homenageado pelo Bloco. O Bloco conforta todos os seus membros com o privilégio de uma boa consciência unicamente determinada pela sua oposição ao “sistema”. Com essa boa consciência, os bloquistas podem denunciar toda a gente como pecadora, e ao mesmo tempo praticar os pecados de que acusam os outros, com a certeza de que a seita saberá absolvê-los. Não, isto não é simplesmente hipocrisia: é a abolição de toda a responsabilidade moral do indivíduo.

É por isso que este extremismo esquerdista, que diz lutar por um “mundo melhor”, nunca foi, não é, nem pode ser uma origem de progresso. O extremismo esquerdista é capaz de explorar todas as questões possíveis, da pobreza ao racismo, mas no fundo tudo isso lhe é indiferente. O que lhe importa é apenas subverter e destruir o “sistema burguês”. O seu uso desses temas é fundamentalmente oportunista e cínico. Se o BE mandasse, continuaria, como se vê pelos dirigentes do Bloco, a haver gente a enriquecer, a incitar ao ódio e a abusar de outras pessoas, como houve em todos os países e em todas as épocas onde comunistas como os do Bloco de Esquerda tiveram poder para construir a “sociedade socialista”.

A ultrapassagem e a correcção de problemas como a violência doméstica está na liberdade e na responsabilidade individuais. Está num “sistema” como o que assenta no Estado de direito, na democracia representativa e na economia de mercado, em que é possível denunciar, discutir, escolher e formar maiorias para deplorar comportamentos, responsabilizar indivíduos – e assim mudar atitudes. Acontece que é precisamente esse “sistema” que o Bloco quer destruir. E é aqui que está verdadeiramente a imoralidade do bloquismo: no facto de pretender abolir as condições que permitiram, ao longo de décadas, tornar o mundo um pouco mais decente.