Há na política portuguesa uma controvérsia que, não tendo um lugar central na atenção dos media, não representando uma fissura irreparável, nem envolvendo propriamente uma multidão, merece o nosso exame pelo carácter simbólico e pelo esclarecimento importante que pode trazer ao país. De um lado está o grupo que dirigiu o CDS por mais de duas décadas e saíu derrotado, primeiro, pelos portugueses nas urnas em 2019 e, depois, no congresso de Aveiro em Janeiro de 2020. Do outro lado está a nova direcção de Francisco Rodrigues dos Santos.

O primeiro grupo, constituído pelas caras mais conhecidas fora do partido, quando estava à frente do CDS construiu a sua política assente em três postulados. Primeiro, que a faixa decisiva do país – a que pensa, pressiona, negoceia, manipula e resolve – é de esquerda. Segundo, que era impossível enfrentar a esquerda. Terceiro, que não existe em Portugal uma direita que valha a pena representar. Decidiu então parecer-se com o PS, na esperança de recolher alguma simpatia pela proximidade ao poder, alguma visibilidade no debate público, o estatuto de interlocutor e as sobras de algum descontentamento de circunstância. É verdade que entre os anteriores dirigentes existiam diferenças de atitude e pensamento, e até por isso ninguém estranhou. O próprio PS não se recomenda pela estabilidade do seu corpo filosófico, nem das suas políticas, nem sequer das causas que vai inventando para fundamentar os seus estranhíssimos trejeitos de governação. Sempre teve militantes e dirigentes de toda a pena. Bastava não contradizer o PS nos pontos fundamentais.

A política do CDS anterior ficou definida por uma indefinição deliberada. Chamando-lhe “pragmatismo”, o partido acudia a todos os descontentamentos – que em Portugal são muitos, mesmo que em bandos pequenos, como os melancólicos coletes amarelos que a dra. Assunção Cristas se apressou a apoiar; especializou-se no mar, no campo, no azul, no verde e em todas as cores; esqueceu-se que a acção política é uma sucessão de escolhas, defendeu tudo, os sentimentos, as grandezas, o indivíduo, o império, o bendito “digital”; sintetizou-se na frase de um deles, seu perito mais ilustre, quando decretou que ia “desenvolver a economia sem deixar ninguém para trás”. Uma frase fascinante, pela impossibilidade de encontrar um partido, ou até mesmo um único sujeito em Portugal, capaz de discordar dela.

Por outras palavras, o anterior CDS acreditou que ia ficar com os votos do PSD, estando o PSD associado ao abominável governo da tróica. Esqueceu-se que tinha estado no mesmo governo; e esqueceu-se sobretudo que os portugueses não tinham sobre esse governo a mesma perspectiva, a tal ponto que voltaram a votar nele e faltaram meia dúzia de deputados para fazer uma segunda maioria absoluta. Só para o CDS, a coligação e o dr. Paulo Portas deixaram no parlamento 18 deputados. Não foi o ajustamento, não foram os cortes nem o “neo-liberalismo”, mas os sábios da dra. Assunção Cristas quem tratou de reduzir o grupo parlamentar do CDS a 5 deputados. A desculpa do governo da tróica dá vontade de chorar.

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O segundo erro do anterior CDS foi a convicção de que a proximidade com o PS traria ao partido a possibilidade de uma coligação, “libertando o PS” de más companhias. Esqueceu-se que o PS não achava as companhias más. E não compreendeu que, abstendo-se de levantar uma verdadeira oposição, tudo o que fazia era fortalecer o PS e tornar-se a si próprio cada vez mais dispensável. Os eleitores compreenderam.

Convém reconhecer que o plano não era totalmente mal pensado. Em parte resultou, na medida em que, até hoje, as pessoas deste grupo são chamadas para representar o CDS nos órgãos do regime, incluindo jornais e televisão. São os notáveis que os jornalistas aprenderam a associar ao CDS e que ainda ouvem como fonte fidedigna do que se passa no partido e do que o partido pensa.

Este grupo agitou o seu desagrado quando o novo CDS negociou o acordo de governo nos Açores, terminando mais de vinte anos de poder socialista; uma posição inteiramente coerente, apenas pouco explicada. De nada serviu o putativo esclarecimento que puseram a circular declarando as virtudes limpíssimas dos subscritores e sugerindo que o Chega não era um partido com quem se pudessem sentar em democracia. Previsivelmente, ninguém acreditou. Por essa altura, já todos os partidos – incluindo o PS, numa cena imorredoura fixada em fotografia – tinham votado com o sr. Ventura, e negociado votações com ele, e contado com ele para fazer aprovar ou cair propostas no parlamento. E era tarde para fazer passar por castas um conjunto de personagens que ostentavam há anos uma convivência pública e notória com dirigentes comunistas. O que abalou aquelas almas não foi a entrada do Chega, foi a exclusão do PS.

O grupo de personalidades que governou o CDS até 2020 quer conviver com o PS e espera por “outro PS” –  uma fantasia absurda. Não há nem nunca houve outro PS. O que há é um partido que enfrentou a extrema-esquerda quando ela ameaçava tomar o poder que o PS queria para si. Mas assim que o ambiente mudou, o PS deixou-a crescer e deu-lhe toda a relevância que ela conserva até hoje. Ao ver-se aflito em 2015, o PS teve os dois partidos comunistas de que precisou para armar a geringonça. Treinado na duplicidade, assente num modelo de governação ensaiado em câmaras municipais, desde logo em Lisboa, o PS não mudou a sua natureza. É o mesmo partido sem convicções, e tem tudo para adornar ainda mais à esquerda. Os conservadores da televisão que se vão acautelando.

A nova direcção do CDS identifica o PS como o principal problema do país, e entende a esquerda como o ambiente em que o PS vive bem. A esquerda, do ponto de vista do PS, não é uma filosofia nem uma doutrina ou ideologia, é um ecossistema, cujas espécies invadem o Estado e entram em todos os cantinhos da vida dos portugueses. Francisco Rodrigues dos Santos e os novos dirigentes reservam para os partidos da esquerda uma aceitação exclusivamente democrática e formal, mas não reconhecem neles outra respeitabilidade. No seu – no nosso – entender, a fronteira da tolerância política passa nos pés do PS.

De resto, a direita dos partidos, da economia, da universidade e da opinião, tem mostrado a sua compatibilidade. As cabeças que estudam o país sabem e gostam de se entender, constatam os mesmos entraves à liberdade e ao desenvolvimento, conhecem as referências culturais que os portugueses querem manter – a que a esquerda chamava “um estilo de vida burguês” e hoje, com a degradação progressiva do pensamento e da retórica, chama “supremacia branca” ou “racismo estrutural”. O actual CDS quer defender precisamente esse “estilo de vida”, baseado na possibilidade de cada indivíduo escolher livremente a sua família, nos seus próprios termos – e não nos termos que a esquerda quer determinar ao sabor da última indignação; baseado no conhecimento livre, na ciência livre, na tradição e na história, porque assim se constrói uma identidade e assim se imagina um futuro. O actual CDS repudia os pequenos presunçosos que forçam sobre o passado uma moral contemporânea, sem sequer desconfiarem que a moral de hoje pode não ser a moral definitiva. E quer combater a pobreza, o reflexo mais miserável de 25 anos de políticas irresponsáveis e opressivas.

Francisco Rodrigues dos Santos define o Partido Socialista como o grande adversário, e explica todos os dias, ponto por ponto, fracasso atrás de fracasso, a maneira como o PS agride o país. As explicações dele apontam caminhos. Definem um quadro político claro e estruturado. Abrem à direita e combatem a esquerda.

Não faz sequer sentido apontar o dedo a esta direcção por ter imposto uma curva inopinada no caminho do CDS, como já disseram. Paulo Portas preveniu antes de se afastar que a direita não voltaria ao governo sem uma maioria absoluta. Uma verdade simples que não parece entrar em certas cabeças. A nova direcção do partido quer fazer tudo para que esse governo seja possível e merecido. Não quer resignar-se e abandonar os portugueses às sobras interesseiras do PS.

A direita existe e o CDS tem obrigação de a representar. Uma direita que não se levanta e não vota no primeiro demagogo a pegar no microfone, uma direita exigente e – por enquanto – serena, à espera de quem lhe inspire confiança para uma governação firme e civilizada. Essa direita não espera uma figura mítica, espera um governo de gente sensata e capaz chefiada por um líder com as ideias no sítio.

A nova direcção do CDS sabe que a sociedade portuguesa mudou. Há uma nova classe média gigantesca, feita de licenciados com muitos anos de preparação, habituada a concorrer por notas e exames, a ganhar abaixo das suas expectativas porque a economia que existe não os pode absorver e a economia que o país precisa não encontra os técnicos que procura. Há um desajuste incompreensível entre o ensino superior e a economia que pode pagar bons ordenados. Há um partido que manda e espreme a economia até à última gota. E há um eleitorado que compreende isto e sabe que Portugal tem de se desembaraçar do PS.

Habitam assim no CDS duas correntes bem diferenciadas: a da anterior direcção, e a da actual. O que as separa não é a experiência contra a inexperiência; não é a moderação contra o radicalismo; não é a maturidade contra a juventude; não é o liberalismo, o conservadorismo, ou a democracia cristã. O CDS tem uma história com 47 anos de democracia; sabe muito bem quem é, dispensa uma crise de meia-idade e as correspondentes inseguranças existenciais.

O que separa as duas correntes não é nenhuma das razões anteriores, como chegou a ser adiantado. Não é um problema doutrinário. Nem é, como se mostrou mais acima, o dr. Ventura. O que as separa são dois posicionamentos, dois conjuntos de ideias que uma e a outra estão dispostas a aceitar; são na verdade duas políticas. Muito claramente, o que separa a anterior e a nova direcção do CDS é o Partido Socialista.