Até há não muitos meses atrás, quase todos davam como altamente improvável a possibilidade de a coligação PSD/CDS ganhar as eleições. A única questão em aberto parecia ser a de o PS conseguir ou não chegar à maioria absoluta. Devo reconhecer que me incluía nesse grande grupo, assim como a larga maioria das pessoas, de várias orientações partidárias, com quem discuti o tema. Entre algumas (muito poucas) excepções é justo reconhecer que a mais notável foi a de Zita Seabra. Em conversa numa altura em que as sondagens davam a maior vantagem ao PS, argumentou de forma convicta, precisa e detalhada o caminho através do qual a coligação acabaria por sair vencedora. A minha reacção foi de cepticismo, mas enganei-me. O que se passou nos últimos meses seguiu muito de perto o guião que me foi apresentado e do qual duvidei.
Mais recentemente, face ao descalabro do PS e quando as perspectivas de uma vitória – antes quase impensável – da coligação já eram mais firmes, a questão passou a ser a de saber se haveria ou não maioria absoluta e quais as implicações dos vários cenários pós-eleitorais que se poderiam colocar. No final de Setembro, escrevi aqui que: “Face à radicalização do PS, um cenário sem maioria absoluta conduzirá portanto aparentemente a uma crise institucional ou a uma “solução” de um governo de coligação do PS com a extrema-esquerda, com tudo o que isso implicaria para o país. Suspeito que muitos analistas e académicos vêem essa possibilidade com bons olhos e a considerariam até uma “normalização” do sistema partidário e um avanço progressista. Não estou no entanto certo que a maioria dos eleitores comuns partilhe essa visão, incluindo uma boa parte do eleitorado tradicional do PS.”
Ora, a coligação confirmou nas urnas a vitória inequívoca para a qual todas as sondagens apontavam (a propósito: quantas pessoas já reconheceram publicamente que se enganaram rotundamente quando garantiam que as sondagens estavam completamente erradas?) mas ficou aquém da maioria absoluta. Neste cenário, é sem surpresa (mas com preocupação) que constato que está em marcha o que previ no final de Setembro: a tentativa explícita, não obstante a derrota histórica do PS, de constituir um governo suportado por uma frente de esquerda.
António Costa, confrontado com uma derrota que defrauda todas as expectativas formadas quando substituiu António José Seguro e que, pelas suas circunstâncias, abala as próprias fundações do Partido Socialista, está a seguir a linha de radicalização que se foi tornando notória ao longo da campanha. À medida que o PS radicalizou, o eleitorado do centro foi abandonando o partido e ficou também aberto o caminho ao crescimento da extrema-esquerda, explicitamente reconhecida por Costa como parceiro preferencial, à revelia de toda a história do PS.
Impulsionado pela estratégia desastrosa do PS, pela comunicação social e pela conivência por razões tácticas da parte da coligação, o BE foi quem mais aproveitou com um crescimento notável, ainda que muito aquém – para já – dos resultados de agrupamentos semelhantes noutros países do Sul da Europa. Sucede, no entanto, que o PS e o seu eleitorado não são homogéneos, pelo que a estratégia de radicalização na busca de uma frente popular é de alto risco, não só para o país, mas também para o próprio partido.
A título de exemplo, vale a pena ler a eloquente e lúcida “declaração de voto passado” de Luís Aguiar-Conraria: “Nestas últimas eleições votei no PS. Li o seu cenário macroeconómico centrista e sensato, comprometido com as regras europeias. Confiei em alguns nomes da sua equipa de economistas, nomeadamente em Manuel Caldeira Cabral (que conheço muito bem pessoalmente, afinal os nossos gabinetes ficam no mesmo corredor) e em Mário Centeno (que apenas conheço academicamente). Não li nem o programa do BE, nem do PCP. O seu discurso tornava verdadeiramente incompatível qualquer possibilidade de acordo com o PS. Esta minha declaração de voto serve apenas para dizer que não teria votado no PS caso imaginasse possível qualquer coligação ou acordo com o BE+CDU. Se o PS ao estar a conversar com o PCP e o BE pretende pregar um susto de morte a Cavaco Silva, irritar direitolas, ou, simplesmente, aumentar o seu poder negocial perante a PàF, óptimo. Fazem muito bem e, por favor, continuem. Já se estas negociações forem mesmo a sério, então votei no partido errado.”
A questão é que em política é possível ficar encurralado pelo próprio bluff. Ainda mais numa situação em que a ala syrizista do PS declara a morte do “arco da governação” e anseia explicitamente por um governo de frente popular com um programa de ruptura. Perante isto, podem estar a chegar momentos de grande responsabilidade e os deputados do PS poderão vir a ser confrontados com uma decisão que os marcará para o resto da sua carreira política.
Por razões distintas, creio que nem uma grande coligação PSD/PS/CDS, nem uma frente de esquerda são desejáveis para o país. O Presidente da República deve dar posse a um governo minoritário da coligação vencedora e, nesse cenário, os deputados do PS, um a um, terão de assumir, em consciência, as suas responsabilidades com o eleitorado que os elegeu, com a herança histórica do PS e com o país. Este é o momento em que todos os socialistas democráticos que rejeitam as tentações totalitárias não podem permanecer calados e passivos.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa