É importante começar pelo princípio das coisas a fim de perceber o seu eventual termo. A ADSE foi criada em 1963 no Ministério das Finanças com a designação que nunca perdeu junto dos funcionários públicos, a saber, a «Assistência na Doença aos Servidores do Estado». Esta decisão puramente administrativa seguiu-se à reforma da previdência social ocorrida em 1962, na sequência da eclosão da guerra colonial e da crescente da emigração em pleno 2.º Plano de Fomento do Estado Novo. O regime já não podia deixar a população sem um mínimo de assistência médica, criando então as famosas «caixas de previdência» a par dos já existentes hospitais civis.
Não quis, porém, entregar os «servidores do Estado» a esse patamar mínimo de cuidados médicos e concedeu-lhes, mediante uma cotização obrigatória (em 1974 era de 1% quando ainda não havia IRS), a possibilidade de aceder à medicina privada. A ADSE era, pois, a forma barata de consolidar a fidelidade dos funcionários ao regime, poupando-os às filas das «caixas» e, ao mesmo tempo, garantindo clientes aos médicos particulares que ainda hoje subsistem através do «regime livre». A ADSE era na realidade uma benesse mais da qual os funcionários beneficiavam a par da já antiga Caixa Geral de Aposentações criada em plena Ditadura Militar em 1929…
É um equívoco falar da ADSE como um sistema ou sub-sistema de saúde. Nunca prestou cuidados médicos a ninguém em mais de 50 anos, ao contrário dos SAMs por exemplo. Tratou-se sempre de um organismo político de carácter puramente burocrático que continuou a funcionar depois do 25 de Abril tal e qual como antes. A fidelidade dos funcionários públicos é a primeira necessidade do Estado português e, se ao tempo lhes pagava mal comparado com o sector privado, compensava-os com a reforma, o apoio financeiro na doença e os horários mais leves.
Quando o Serviço Nacional de Saúde público e tendencialmente gratuito foi criado em 1979, no seguimento das movimentações do sector médico anteriores ao 25 de Abril, chegando na altura a Ordem dos Médicos a ser encerrada pela PIDE/DGS, a ADSE devia ter pura e simplesmente acabado, do mesmo modo que a Caixa Geral de Aposentações quando foi criado o regime geral de pensões. Sem isso, a ADSE tornou-se simultaneamente um privilégio e uma dupla-tributação cada vez mais onerosa que, neste momento, atinge a soma exorbitante de 3,5% do ordenado ou pensão brutos!
Em 2010, na véspera da bancarrota, a segurança social e a saúde representavam perto de 50% da despesa pública, ou seja, mais de 25% do PIB. Daí a discussão actual sobre a ADSE, para já não falar da CGA, bem como das pensões em geral. No mês passado, a Entidade Reguladora de Saúde deu a conhecer um extenso «estudo sobre a reestruturação da ADSE» sem paginação nem autoria. O estudo faz-se basicamente eco de um relatório do Tribunal de Contas ao qual o comum dos mortais não tem acesso, mas que denunciava o abuso do aumento da cotização para 3,5% a acrescentar aos impostos pagos pelos funcionários e aposentados da função pública em sede de IRS, com o fito governamental de tapar o défice público com esse corte administrativo!
Ficou aos funcionários e jubilados a liberdade de renunciar à ADSE mas a opacidade do sistema, a ausência de participação, o hábito de pagar e a ignorância quanto ao futuro do SNS têm feito com que poucos «beneficiários» tenham saído deste sistema de duplo pagamento. A única coisa que se sabe é que o Estado não pagará mais compensações e que os 3,5% não serão suficientes – dizem – para continuar a sustentar o sistema privado. A proposta é a transformação da ADSE numa espécie de «mútua» sem custos para o Estado. Acredite quem quiser mas isso nunca irá existir. Hoje em dia, a ADSE aplica-se a cerca de 1.250.000 pessoas e rende ao Estado mais de 500 milhões de euros, tendo comparticipado apenas com 400 e tal milhões de euros para o sector privado. Os pagantes nunca receberam qualquer informação a este respeito.
Na prática e certamente na teoria de quem concebeu e dirige as Parcerias Público-Privadas, a principal função da ADSE tem sido assegurar clientes às PPPs e ao demais sector privado, fazendo aliás concorrência desleal às companhias de seguros, pois estas não podem pedir de 3,5% do rendimento à esmagadora maioria das pessoas. Entretanto, proliferam as «comparticipações» de todo o tamanho e feitio, desde o ACP às câmaras municipais, estendendo deste modo as suas redes de clientes. Ao mesmo tempo, com o acentuado envelhecimento dos membros da ADSE e a forçosa quebra do emprego público, os gastos da tal «mútua» serão em breve insustentáveis, segundo o estudo.
Entretanto, ao lado aí está o SNS que a ADSE tem libertado de muitas das suas funções, embora os funcionários públicos continuem a pagar os seus impostos para financiar o sistema público. É portanto de prever a curto prazo nova pressão sobre o SNS, tanto ao nível do acesso como do aumento dos custos devido ao envelhecimento populacional, nomeadamente ao nível dos novos medicamentos sujeitos aos custos de inovação, com gastos acima dos 10 mil milhões de euros. Não há pois volta a dar nem sítio para onde fugir. O único destino da ADSE é fechar. Haverá várias maneiras de o fazer. Seja como for, o problema não é criar uma equidade imaginária que não existe entre sector público e sector privado, mas sim redistribuir judiciosamente as despesas do Estado de forma a não prejudicar a vida económica do país.