1 Era o estudo que não convinha nada a este Governo e, sobretudo, não convinha nada a esta equipa do Ministério da Educação. A queda abrupta da notação internacional dos alunos do 4º ano do Básico a Matemática no TIMSS 2019, “Tendências Internacionais de Matemática e Ciências”, comprova que a ruptura operada em 2015 resultou naquilo que muitos (eu incluído) prognosticaram: num desastre.

Não estamos a brincar. Estamos a falar do futuro das nossas crianças. Não estamos mesmo a brincar. Estamos a falar do futuro daqueles que acabaram de entrar na escola. É isso que mais dói porque foram elas que foram usadas como cobaias.

A comparação não podia ser mais clara, mais transparente.

Houve um TIMSS em 2011, outro em 2015, outro em 2019. Antes Portugal só participara nestes estudos em 1995. Na altura o resultado fora tão mau que uma secretária de Estado de um governo socialista, Ana Benavente, achou que era má ideia compararmo-nos com outros países. Felizmente mentes mais arejadas foram passando pelo Ministério da Educação e estudos como este – o PISA, organizado pela OCDE, é outro exemplo – passaram a ser tidos como instrumentos importantes para avaliar a evolução da qualidade do nosso sistema de ensino.

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Em 2011 os resultados já eram bons, em 2015 eram quase excelentes: muitos abriram a boca de espanto quando viram os nossos alunos do 4º ano do Básico, a antiga 4ª Classe, ultrapassarem no ranking os da Finlândia.

Agora, em 2019, veio o trambolhão. A notação ficou mesmo atrás da de 2011. O que se passou?

Ou melhor: o que é que o Governo fez com os nossos miúdos, pois quando tomou posse eles estavam a entrar no 1º ano e, por isso, todo este seu ciclo de aprendizagem é da sua inteira e exclusiva responsabilidade?

2 Regressemos aos primeiros dias deste Governo, façamos um exercício de memória. Eu nem preciso de ter muita memória, basta-me reler o que escrevi na altura, mais exactamente a 14 de Janeiro de 2016, tinha o executivo pouco mais de mês e meio. Mas já tinha tratado de começar a desmantelar um edifício que pacientemente sucessivos ministros da Educação, uns do PS, outros do PSD, com mais ou menos solavancos, tinham posto de pé.

Esse edifício fora sendo erguido ao longo de duas décadas, com a reintrodução de provas de avaliação que começaram no 12º ano e foram descendo ciclo a ciclo até chegarem ao 4º ano, e com a aprovação de metas curriculares mais exigentes e menos credoras do facilitismo “eduquês”. Isso não acontecera apenas durante o consulado de Nuno Crato – na verdade iniciara-se forma mais consistente com Marçal Grilo e não mais parara, é certo que com muitos acidentes de percurso e com batalhas que, parecendo laterais, tinham sido igualmente fundamentais (como a da avaliação dos professores).

Ora numa altura em que todos sabíamos – havia um parecer do Conselho Nacional de Educação que foi olimpicamente ignorado – que os exames não excluíam senão 0,3% e 1,9% dos alunos que a eles chegavam com nota positiva, os novos senhores da 5 de Outubro vieram com um discurso sobre uma escola “elitista” que promovia a exclusão e, de uma assentada, destruíram todo o sistema pacientemente montado por tantas equipas ministeriais diferentes.

A primeira vítima foi naturalmente o exame do 4º ano do Básico, eliminado de forma fulminante no Parlamento por via de uma proposta de lei do Bloco de Esquerda. Proposta que um PS então rendido à geringonça aplaudiu de pé. Proposta que na nova linguagem do Ministério se saudava com entusiasmo porque contrariava a “cultura da nota”.

Ora a verdade é que, goste-se ou não, o melhor que se pode apurar dos estudos académicos é que precisamos de mais, não de menos exames. Por outras palavras, palavras que a maior parte dos que me leem compreenderão por experiência própria: a testagem tem um efeito positivo na consolidação das aprendizagens. Fazer exames obriga a estudar, obriga a fixar e superar objectivos.

Ora aquilo que todos os alunos – e professores – ficaram a saber mal começaram o seu 1º ciclo do Básico no final de 2015 foi que não teriam essa testagem final. Não teriam exame. Só teriam, a meio do 3º ano, uma palhaçada – foi mesmo uma palhaçada – de um “teste de aferição” que ainda hoje estão para saber para que serve e a que verdadeiramente não ligam nenhuma.

Com esta primeira medida estava dada a primeira machadada para assegurar que, quatro anos depois, teríamos aquilo que temos: “mais alunos do 4.º ano que não sabem o básico e menos a chegarem ao nível avançado”.

3 Mas há mais. No caso concreto da Matemática o progresso de 2015 devia-se também a alterações curriculares introduzidas em 2012/2013. Mal chegou ao Ministério a nova equipa de Tiago Brandão Rodrigues deixou claro que discordava dessas alterações e que elas seriam alteradas. Passou às escolas a mensagem que as metas não eram para levar a sério e, como se isso não bastasse, introduziu o princípio da flexibilização curricular.

Mais concretamente, logo na mudança de ano lectivo, em Agosto de 2016, deu orientações muito concretas às escolas para flexibilizarem programas e metas curriculares. Essa flexibilização podia ir ao ponto de as matérias poderem ser passadas não apenas para anos diferentes, mas para ciclos lectivos diferentes. Mais: o Ministério indicou que conteúdos que fossem considerados não fundamentais – sem indicar quem os considerava não fundamentais – poderiam “ser lecionados facultativamente, em função das necessidades da turma e ritmos de aprendizagem.”

Tudo isto naturalmente reduziu a cinzas, ou a menos que cinzas, o plano curricular de Nuno Crato. (Esse processo está descrito aqui em pormenor.)

Em síntese: os miúdos que chegaram aos TIMSS 2019 não tinham experimentado a pressão de se preparar para um exame e estudaram por um curriculum menos exigente do que de 2015. Alguém se surpreende que os resultados tenham sido piores?

Face à hecatombe, com uma profunda e chocante desonestidade intelectual, o secretário de Estado da Educação veio agora com a lenga-lenga do costume: “a culpa é do Passos”. Por outra palavras, a culpa é ainda das metas curriculares de Nuno Crato, metas que o Ministério já dissera que não eram para cumprir. Só não tive vergonha por ele ao ouvi-lo porque já o ouvi vezes suficientes para saber que não é pessoa a quem a vergonha aflija.

4 Entretanto é bom ter noção que, com esta orientação, e com este governo “de esquerda”, quem mais sofre são os pobres. O TIMSS 2019 mostra, mais uma vez, que os melhores resultados são os obtidos pelos alunos das escolas privadas e aqueles que pertencem a classes sociais mais elevadas. Dir-se-ia que sem surpresa, só que com um amarguíssimo travo na boca: em Portugal o elevador social está avariado, pois somos o país da OCDE onde existe menor mobilidade social na educação.

E no 1º ciclo do Básico o que é que aconteceu nos últimos quatro anos? Não sei fazer um diagnóstico rigoroso, sei captar indicadores. Como todos se recordarão, uma das cruzadas deste governo “das esquerdas” foi dirigida contra as escolas privadas, através da denúncia dos contratos de associação. Não vou reabrir esse debate, mas notar apenas o seguinte: em 2015 havia 50 mil crianças a frequentar escolas privadas no 1º ciclo do Básico, agora há mais de 52 mil. Em termos percentuais, passou-se de 12,1% para 13,3%, de acordo com os últimos dados da Pordata.

O que é que isto nos diz? Que mais portugueses se esforçam ainda mais por ter os seus filhos em escolas privadas, até porque há menos apoios públicos. Que com isso mais diferenças de cavam entre os podem pagar e os que não podem pagar.

E como vimos que logo à saída do 1º ciclo do Básico já existe uma diferença significativa entre quem anda numa escola pública e quem anda numa escola privada, mais razões temos para pensar que a educação pública não está a cumprir o seu papel na criação de igualdade de oportunidades. Pelo contrário: é logo aí que se cavam mais as diferenças de partida.

Esta é uma das facturas do facilitismo, e uma factura bem pesada. Uma família preocupada com o futuro dos seus filhos ao ver esta evolução da escola pública, ao ver este discurso do Ministério, foge para o privado. Mas só foge quem pode, quem tem dinheiro.

O nosso socialismo é uma fábrica de desigualdades.