A audição a Luís Filipe Vieira, empresário e dirigente desportivo no Benfica, relembrou-nos como as elites nacionais rodearam o BES/ Novo Banco numa teia intrincada de interesses, favores e cumplicidades. E lembrou-nos ainda mais: como o futebol gera ganhos inestimáveis em termos de acesso ao poder, a negócios, a crédito e a oportunidades de enriquecimento. Na audição, isso apareceu com a reestruturação sucessiva das dívidas ou com a aceitação do banco de que os problemas ficavam por “resolver mais à frente”. Manifestou-se quando Vieira informou que o próprio Ricardo Salgado lhe havia pedido o favor de assumir uma dívida já existente (da Opway, do Grupo Espírito Santo) — e ele aceitou. Realçou-se ainda quando o próprio Luís Filipe Vieira afirmou que a sua ida para a presidência do Benfica foi apoiada por instituições financeiras. E, claro, foi logo posto em evidência no arranque da audição, quando Vieira se apresentou como presidente do clube e interpretou o escrutínio de que estava a ser alvo como represália pelo seu sucesso empresarial e desportivo.

Isto seria apenas um relato de falência moral e institucional do regime caso não viesse acompanhado com uma pesada factura. Os relatórios referentes ao Novo Banco expõem Luís Filipe Vieira como segundo maior devedor em perdas — 181 milhões de euros. Perdas que penalizam directamente os contribuintes, visto que foram imputadas ao Fundo de Resolução. Perdas que, para além disso, poderão tornar-se maiores porque, afinal, a dívida global a si associada ascende a 400 milhões de euros. Um problema ao qual os Portugueses não poderão fugir, quando a conta chegar. Mas um problema que, mesmo que garanta que não foge, ninguém acredita que venha a atingir Luís Filipe Vieira, o empresário que nega incumprimentos e que esclarece que as dívidas não são suas — de resto, o seu património pessoal conhecido é uma casa para palheiro.

Tudo isto soa a filme repetido e o argumento nada tem de inovador. Mas nem por isso perde o interesse: estas audições não servem apenas para escrutinar a actuação individual dos visados, mas também para denunciar um sistema de poder que, lá do cimo, prospera através dos contactos na sua agenda telefónica. Para expor a rede de interesses e favores da qual tantos beneficiam. Para mostrar como o regime anda sempre de mão dada com o futebol. E para acentuar uma falência institucional e aquela que é a sensação de qualquer cidadão comum: as regras que se aplicam a si não são as mesmas que se aplicam a eles.

Ora, a questão que fica sempre por responder é esta: o poder político quer ser parte da solução ou parte do problema? Quando se assiste, nas audições parlamentares, aos deputados a questionar duramente os visados, como aconteceu com Luís Filipe Vieira, a tentação seria arrumá-los no campo das soluções. Mas, em termos práticos, todo esse esforço esfuma-se quando recordamos que, há tão pouco tempo, Luís Filipe Vieira exibia o seu poder e a sua influência sob o patrocínio de várias personalidades políticas.

Em Setembro de 2020, António Costa e Fernando Medina integraram a Comissão de Honra da recandidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica. À data, os factos acima eram em grande medida conhecidos. Tal como se sabia que Vieira havia sido constituído arguido por crimes de fraude fiscal em casos que envolviam directamente a sua actuação enquanto dirigente desportivo. Mas, questionado sobre esse apoio, o Primeiro-Ministro explicou: “Do ponto de vista da minha consciência, não devia recusar”. E salientou que via o tema como algo da esfera da sua vida privada. Não vale a pena ressuscitar o debate que houve há meses sobre esta posição insustentável de António Costa, até porque sabemos como é que essa história acabou. Mas vale a pena agora, a propósito da audição de Luís Filipe Vieira esta semana, lembrar o seguinte: é inútil indignarmo-nos com as suas declarações ou as de quem nos envia facturas de milhões de euros se, ao mesmo tempo, premiamos os seus cúmplices — aqueles que, como Costa e Medina, legitimam a sua actuação e a rede de influências que permitem estes abusos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR