Em declarações ao Ponto SJ, que o Observador reproduziu no passado 29 de Maio, o Cardeal D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima e Vice-Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmou que, na última Ceia, os apóstolos muito provavelmente comungaram na mão, porque “O próprio Jesus disse ‘tomai e comei’. Tomai. Não disse ‘abri a boca’. ‘Tomai e comei, tomai e bebei.’ O gesto de Cristo é expressivo”. Também afirmou, num inspirado lance, que a mão não é menos digna do que a boca para receber a Eucaristia: “Às vezes vejo mãos calejadas a receber a sagrada hóstia e fico comovido. São mãos de trabalho, de sacrifício, de doação à família, de doação aos outros. Mãos às vezes de santos e santas. Porventura mãos santas.

O precedente histórico é, decerto, relevante, mas não decisivo porque, se é verdade que os textos evangélicos sugerem, como afirma o Cardeal Marto, que os apóstolos comungaram na mão, também é possível, mas menos provável, que o tenham feito directamente na boca. De todos os modos, este argumento não é conclusivo, porque os apóstolos, então investidos na plenitude do sacerdócio, para poderem renovar aquele sacrifício – “fazei isto em memória de Mim” (Lc 22, 19) – não são equiparáveis aos leigos, que recebem do ministro, ordinário ou extraordinário, a comunhão. Com efeito, os concelebrantes, como os padres na Eucaristia da sua ordenação sacerdotal, não comungam na boca, mas na mão.

Por outro lado, as circunstâncias absolutamente únicas daquela última Ceia não são reproduzíveis, nem desejáveis, para as actuais celebrações eucarísticas. Se o fossem, a Missa deveria ser então celebrada em aramaico, sem paramentos, sem a presença de mulheres, nem jejum eucarístico, etc.

Jesus Cristo, não tendo estabelecido a forma de distribuição da Eucaristia, deu liberdade à Igreja nesta matéria. Por isso, inicialmente comungava-se na mão, como recordou a instrução Memoriale Domini, Sobre a Maneira de Distribuição da Santa Comunhão, da Congregação para o Culto Divino, de 29 de Maio de 1969.

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Como muito bem disse o Bispo de Leiria-Fátima, a mão não é menos digna de receber Jesus. A bem dizer, a comunhão é sempre, directa ou indirectamente, na boca, pois não há outra forma de humanamente ingerir o Corpo e Sangue de Cristo. Como afirmou D. António Marto, a questão não é a da maior ou menor dignidade de um membro do corpo humano mas, poder-se-ia acrescentar, a de saber qual a forma mais conveniente e piedosa de comungar.

Foi, precisamente, por uma razão de respeito pelo Santíssimo Sacramento que a Igreja, depois de ter feito, nos primeiros séculos, a experiência da comunhão na mão, achou mais prudente a comunhão oral. De facto, quem comunga na mão, tem mais hipótese de não ingerir a hóstia consagrada, embora o deva fazer de imediato, ou de deixar cair ao chão alguma partícula que dela se desprenda, no seu duplo transporte: da mão do ministro para a do comungante e, depois, da mão deste para a boca. Se se usar a bandeja e se comungar directamente na boca, é quase nula essa desrespeitosa possibilidade, que deve ser evitada a todo o custo.

Durante os últimos séculos a Igreja, para evitar profanações e sacrilégios eucarísticos, só permitiu a comunhão directamente na boca. Como diz a instrução Memoriale Domini, “a prática que deve ser considerada tradicional assegura, mais efectivamente, que a Santa Comunhão seja distribuída com o devido respeito, decoro e dignidade. Remove o perigo de profanação das sagradas espécies, nas quais ‘de modo único, Cristo, Deus e homem, está presente, inteiro e íntegro, substancialmente e continuamente’ (Instrução Eucharisticum Mysterium, n. 3). Finalmente, ela assegura aquele diligente cuidado com os fragmentos do pão consagrado, que a Igreja sempre recomendou: ‘O que permitistes cair, pensa nele como se tivesses perdido um dos teus membros’ (S. Cirilo de Jerusalém, Catequeses Mistagógicas, V, 21).”

Não é uma razão despicienda porque, em Fátima, o Anjo pediu aos pastorinhos que rezassem “em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido”. Ao dar-lhes a comunhão, disse-lhes: “Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus”. Significativamente disse-lhes “tomai”, como Jesus na última Ceia, dando-lhes depois a sagrada comunhão na boca, como então era obrigatório.

Não obstante a importância da forma como se deve comungar, que é uma questão litúrgica, muito mais grave é a obrigação moral de não receber o Corpo e Sangue de Jesus com consciência de pecado grave. Com efeito, quem comungar, consciente e voluntariamente, nessa situação, não tendo sido absolvido em sede de confissão sacramental, comete sacrilégio. É também obrigatório, na Igreja católica, o jejum eucarístico de “pelo menos uma hora”, de que apenas estão dispensados os doentes (Código de Direito Canónico, cân. 919, §1). É igualmente necessário crer na presença real, verdadeira e substancial, de Jesus Cristo, com o seu Corpo, Sangue, Alma e divindade. Assim sendo, a modalidade da comunhão é relativamente secundária em relação à gravíssima obrigação moral do estado de graça para comungar, à fé na presença real e, até, ao preceito do jejum eucarístico, de que nenhum fiel saudável se pode considerar dispensado, por decorrer de uma lei da Igreja universal.

A forma de receber a comunhão é, em definitiva, uma questão litúrgica, mas também de fé e de comunhão eclesial. De fé porque, como diziam os antigos, lex orandi, lex credenti. Ou seja, a liturgia deve traduzir fielmente a fé da Igreja: a forma ideal de administrar a Eucaristia é a que melhor manifesta a presença real de Jesus Cristo na hóstia consagrada.

Mas, sendo uma questão de fé, tem também que ver com a comunhão eclesial. Infelizmente, tanto os defensores da comunhão na boca, como alguns partidários da comunhão na mão, tendem à imposição da sua opção e à intolerância em relação a quem, legitimamente, prefere comungar do outro modo. Nos grupos eclesiais mais radicais, há até abundância de improvisados ‘liturgistas’ – costuma-se dizer que, a diferença entre um terrorista e um liturgista é que, com o primeiro, consegue-se dialogar … – que são muito escrupulosos em relação a aspectos rituais, mas esquecem, com frequência, o imperativo da obediência, bem como o primado da caridade eclesial.

É certo que, em condições normais, cabe ao fiel escolher a modalidade da sua comunhão, pois o ministro não tem o direito de impor a sua preferência, salvo que uma razão grave o exija. De facto, segundo a instrução Redemptionis Sacramentum, de 25-3-2004, “não é lícito negar a sagrada Comunhão a um fiel, por exemplo, só pelo facto de querer receber a Eucaristia ajoelhado, ou de pé” (n. 91). Segundo esta instrução da Congregação para o culto divino e a disciplina dos Sacramentos, “todo o fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca (Instrução Geral do Missal Romano, n. 161) ou se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento” (n. 92). Mas os fiéis não devem ter apenas em conta a sua vontade individual, mas o bem de todos, ou seja, a comunhão eclesial.

A actual situação de pandemia não só não é normal como é absolutamente excepcional e obriga, por uma razão da mais elementar prudência, à observância de medidas sanitárias especiais. Por isso, mesmo que os ministros e os fiéis tenham as suas preferências que, se forem de acordo com as normas litúrgicas em vigor, são legítimas em circunstâncias normais, devem agora, por deferência com as autoridades eclesiais e civis, seguir as recomendações da Conferência Episcopal Portuguesa, senão por convicção pessoal, pelo menos por amor à Igreja, respeito pelo próximo e pela reverência devida aos legítimos pastores.

São Paulo disse que, quem comungar “indignamente, será réu do Corpo e do Sangue do Senhor”, “come e bebe a própria condenação” (1Cor 11, 27.29). Mas também ensinou que se deve proceder com humildade e caridade, para não escandalizar o próximo: “tomai cuidado, que essa vossa liberdade não venha a ser ocasião de queda para os fracos. (…) Pecando contra os próprios irmãos e ferindo a consciência deles, que é débil, é contra Cristo que pecais” (1Cor 8, 9.12). Com efeito, só na plena comunhão eclesial, a comunhão eucarística é vivência da plenitude do amor que Deus é.