Há uma guerra mediática em curso à volta da invasão russa da Ucrânia. De um lado, a propaganda do Kremlin procura desresponsabilizar-se pelo conflito. Seja quando aponta o dedo às agressões do “imperialismo americano”, da UE e da Nato. Seja quando qualifica a invasão da Ucrânia como uma “operação de paz” que visa a “desnazificação” do governo de Kiev. Do outro lado, o presidente ucraniano, Zelensky, tem sido exímio na utilização dos seus canais de comunicação, com destaque para as redes sociais, para liderar e motivar a resistência dos ucranianos à invasão. Além disso, com smartphones para filmar o rasto de destruição, mas também os momentos de grande emoção de separações familiares ou de crianças refugiadas em abrigos improvisados, a difusão internacional dessas imagens gerou uma comoção transversal e pressão das populações no sentido de sanções severas à Rússia — ou seja, serviu de arma política para isolar do regime de Putin.
A comunicação tem um papel decisivo na gestão de conflitos. Em Portugal, muitos têm sido surpreendidos com a fidelidade do PCP à propaganda russa — como se, afinal, não tivesse sido essa a prática imemorial dos comunistas portugueses. Evitando outras considerações políticas, creio que a raiz dessa surpresa está na incompreensão dos objectivos da comunicação nestes contextos de conflito. Sim, a propaganda russa está completamente desligada da realidade e, mais do que esclarecer, procura confundir através de desinformação e instituir um relativismo moral. Mas a aceitação dessa propaganda não é reflexo de cegueira, é antes a adesão a uma estratégia política: serve o propósito de identificar os inimigos (de Putin e do comunismo) — o liberalismo ocidental, representado pela UE, pelos EUA, pela Nato. Ou seja, a máquina de propaganda de russos e comunistas não procura a sua coerência nos factos, mas sim nos seus alvos: vale tudo para mobilizar contra os seus inimigos.
Funciona? Sim, funciona. Por mais absurda que possa soar, a comunicação consegue efectivamente moldar comportamentos. Comprovam-no décadas de investigação. Na saúde, por exemplo, há evidências de que a comunicação de massas pode ter impactos positivos na testagem para doenças sexualmente transmissíveis ou simplesmente para a adopção de comportamentos mais prudentes. Como vimos na pandemia, os efeitos também se manifestaram e nem sempre de forma positiva — um estudo do NBER verificou que, nos EUA, os telespectadores da Fox News respeitavam menos as regras de distanciamento social. Na educação, há inúmeros exemplos de programas televisivos em sinal aberto que contribuíram para maior literacia da população — um exemplo clássico é o do programa infantil Rua Sésamo, com impacto demonstrado na aprendizagem de milhões de crianças. Na criminalidade, em Itália, constatou-se que a diminuição do número de reportagens sobre crimes nos telejornais fez reduzir as preocupações sociais com a criminalidade e, por arrasto, o orçamento das forças policiais. Em muitos outros domínios sociais, a investigação tem estudado o poder da comunicação em moldar as normas e os comportamentos da população.
Nos conflitos sociais ou em guerras, existem também evidências do poder da comunicação de massas na escalada da violência. Um exemplo paradigmático é o do genocídio dos Tutsi no Ruanda, em 1994: a investigação demonstrou que a difusão de mensagens de ódio na rádio contribuiu para alterar a percepção social sobre os Tutsi, normalizando a discriminação, a intolerância ou mesmo a violência extrema contra essa população. Nos anos 90, a guerra que envolveu Sérvia, Croácia e Bósnia também provou como rádios e canais de televisão muito politizados contribuíam para acentuar o conflito. De resto, seja no contexto da II Guerra Mundial ou da Guerra Fria, existem dezenas de exemplos de como a comunicação de massas (incluindo o cinema) promoveram tensões entre povos.
Ora, se tudo isto é interessante para contextualizar as opções de guerra, é igualmente importante para decidir as estratégias de promoção de paz. Pode a comunicação promover a paz ou, pelo menos, diminuir a intensidade do conflito? Sim, pode. Mas, ao contrário da comunicação de guerra, nada tem sido pensado em termos de comunicação de paz. Se importa distinguir o regime de Putin e o povo russo, há que sensibilizar as populações europeias para que não ostracizem a diáspora russa nas suas cidades — infelizmente, muitos russos a viver na UE têm sido socialmente perseguidos e visto os seus estabelecimentos comerciais vandalizados. E se se pretende enfraquecer o apoio social ao regime de Putin, qual será a opção de comunicação mais eficaz? Será a de isolar os russos (que ficam sujeitos à propaganda do regime, sem contraditório), ou será mais construtivo manter aberto o acesso a conteúdos ocidentais, como os jogos da liga de futebol inglesa, nos quais se incluiriam mensagens de repúdio ao regime de Putin e à invasão da Ucrânia?
O Ocidente tem sido forte e resoluto na estratégia de conflito, isolando a Rússia nos planos económico e diplomático. Mas o mesmo Ocidente tem fracassado na estratégia de paz, deixando-se levar pela emoção do cancelamento aos russos, revelando-se incapaz de objectividade estratégica, com erros sucessivos — seja abolindo a transmissão de canais russos nos países europeus, seja bloqueando conteúdos ocidentais (como a Netflix) nos meios audiovisuais russos, seja ainda expulsando atletas russos de competições internacionais. Uma coisa é isolar o regime, outra coisa é isolar os russos. E este isolacionismo popular, ao contrário do económico, favorece muito mais os interesses do Kremlin do que os dos europeus — porque promove ressentimento e deixa os russos à mercê da propaganda oficial.