Desde que Joe Biden foi eleito, um dos assuntos que passou para a ordem do dia foi a reconciliação transatlântica. É verdade que a União Europeia se viu a braços com a presidência americana mais difícil de sua história recente: Donald Trump trocou-nos as voltas e transformou a NATO numa parceira militar, enquanto o que convém à Europa é uma aliança de democracias que defenda a sua forma de vida, lhe garanta a segurança de diversas ameaças e proteja o laço transatlântico.

Se por um lado Joe Biden já declarou que a Aliança Atlântica é “sagrada” – música para os ouvidos de muitos – e os países membros da NATO já perceberam a necessidade de custear esta empreitada nos termos do compromisso assumido com Barack Obama em 2014, há um debate subtil nos corredores de Bruxelas, essencialmente ligado dois elementos: confiança e ambição. Esse debate ficou patente nos discursos de Ursula von der Leyen e Emmanuel Macron na sessão de abertura do Paris Peace Forum, que decorreu o mês passado.

Se, por um lado, a Presidente da Comissão Europeia voltou a frisar que a geopolítica é um dos pontos mais importantes do seu mandato, von der Leyen mudou ligeiramente a sua posição. Deixou de falar de autonomia estratégica e inseriu a Europa num contexto multipolar, onde o continente tem um papel importante a desempenhar, especialmente num multilateralismo climático e no apoio ao combate à pandemia e ao recomeço económico. A Europa de von der Leyen, ainda sob o silêncio da Alemanha, mais expectante, quer pertencer a um mundo liderado pelos Estados Unidos, onde faz sentido distribuir tarefas. Mais uma vez, sublinho, subtilmente, há um voto de confiança no “novo” aliado americano.

Já Emmanuel Macron, que em tempos declarou que a Aliança Atlântica estava em morte cerebral, parece não ser muito sensível à mudança Trump-Biden, ainda que os anúncios dos nomes da equipa de transição e de alguns dos que irão ocupar os mais altos cargos da administração – centristas e moderados – sejam motivo de alívio. Não parece ser suficiente. No seu longo discurso, só mencionou os Estados Unidos lá para o fim, com se se tratasse de um estado como outro qualquer. No fundo, Emanuel Macron falou de um multilateralismo-cada-um-por si, onde a liderança internacional não deve ser assegurada por ninguém, mas pelos esforços conjuntos dos estados, sejam eles quais forem, para atingir determinados fins. O presidente francês escolheu a ambição europeia de liderar segmentos do sistema internacional através do multilateralismo.

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Não tenhamos ilusões de que o veredito final será alemão. Mas Ursula von der Leyen lê o mundo melhor que Macron. Não há sistema internacional pacífico sem ordem, e uma ordem precisa do entendimento dos líderes das maiores potências internacionais. Coisa que a Europa não é. Para concretizar planos ambiciosos, como a liderança nas questões do combate às alterações climáticas, que se tornou a “causa” europeia, precisa de aliados que lhe garantam simultaneamente a segurança e uma certa liberdade de movimentos. Disponível só há um, os Estados Unidos.

Macron poderia gostar de liderar alguns segmentos de um mundo sem líderes, mas essa ideia não passa de uma ilusão. Uma ilusão perigosa, aliás, porque a história diz-nos muito sobre a repugnância do sistema por vazios de poder. Não escolher é deixar que outros escolham por nós e a China ainda este ano tentou, mesmo que sem muito sucesso. Ou a alternativa do vazio de poder é um mundo de todos contra todos, como dizia Hobbes.

A Europa tem novamente a possibilidade – deveria dizer privilégio? – de fazer uma escolha, agora melhor informada. A ausência de quatro anos da América foi elucidativa de que não podemos, nem devemos, continuar a fazer um caminho que esgote as suas possibilidades em Washington (a Cimeira com a Índia, em Maio, é uma ótima ideia). Mas vários sustos dos últimos anos não provocaram grandes alterações políticas no continente europeu, o que demonstra que não estamos, nem estaremos nos tempos mais próximos, capazes de fazer sozinhos um caminho internacional consistente.

O centro da geopolítica agora está na Ásia. E, ou ganhamos confiança, ou teremos um caminho sinuoso e difícil à nossa frente, sem grandes hipóteses de sucesso. A ambição, sem poder, vale muito pouco.