Se te transformares numa ovelha, os lobos comer-te-ão.
Benjamin Franklin

Quando as nossas ações, omissões ou opiniões estão condicionadas pelo nosso interesse pessoal no resultado, dizemos que há um conflito de interesses, isto é, os actos em causa carecem de independência do seu autor.

A presença do conflito de interesses não é um drama e muito menos um crime, mas coloca sempre um dilema ético que pode ser mitigado ou anulado de várias formas. Estas formas podem ir, por ordem crescente de gravidade, da simples declaração de interesses até à demissão voluntária do cargo devido a impraticabilidade da defesa simultânea de interesses conflituantes.

No mundo financeiro a independência tem requisitos muito concretos (é um estatuto reconhecido). Um intermediário financeiro pode recomendar a clientes instrumentos financeiros emitidos por terceiros recebendo comissões destes. Essa prática é permitida, embora haja um claríssimo conflito de interesses que as autoridades supervisoras obrigam a mitigar através de informação prévia ao cliente e sobretudo através da proibição destes intermediários se intitularem independentes. Curiosamente, o facto de os intermediários independentes cobrarem diretamente ao cliente torna as suas receitas mais visíveis e mais escrutinadas por estes, sendo que não são poucas as situações em que os clientes argumentam que o que não se vê (as comissões pagas por emitentes aos distribuidores) não foram eles que pagaram, isto é, para alguns, o que não se vê, não existe.

Este comportamento míope estende-se a outras áreas da sociedade, sendo que, no caso português há situações que oscilam entre o cómico, o preocupante e o dramático.

É cómico que o jornalista Ricardo Costa tenha feito saber em 2014 que se demitia da direção do Expresso quando o irmão António se candidatou à liderança do PS, tendo reconsiderado após a confiança reiterada da administração da Impresa. O mesmo Ricardo Costa que, com respaldo do patrão, continua a debitar opiniões “independentes”, embora, por mera coincidência com certeza, laudatórias para o seu irmão e para os interesses comuns da empresa que lhe paga e para o Governo dirigido por António. Portanto, esteve bem Ricardo quando se demitiu, mas fê-lo pelas razões erradas: o conflito de interesses não era com o patrão, mas sim, evidentemente, entre a sua opinião frequentemente coincidente com os actos do irmão e o jornalismo independente que diz praticar.   

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Ainda no contexto cómico, mais recentemente, o comentador Pedro Marques Lopes afirmou sem se rir que era “suspeito” para falar do amigo, Pedro Adão e Silva, recentemente nomeado comissário das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril. Curiosamente, não se calou imediatamente, tendo inclusivamente afirmado que “não conheço melhor pessoa para o cargo”.

São no mínimo preocupantes, ou mesmo fétidos, os casos do ministro Siza Vieira e os seus incontáveis conflitos de interesses; as adjudicações públicas ao marido da ministra da Justiça; a omnipresença de Luís Arnaut em negócios que implicam decisões públicas; a extraordinária e numerosa família de Carlos César; e ainda a facilidade com que o “especialista” Germano de Sousa profere opiniões sobre a necessidade de testagem Covid quando é um beneficiário económico claro das suas opiniões, caso estas resultem em políticas públicas.

No entanto, o maior conflito de interesses é bem mais profundo e porventura subtil. Está na essência da democracia e pode representar a sua falência. Com o crescimento do Eestado aumenta a exigência de que determinados assuntos deixem de pertencer à esfera privada e passem para o domínio público, do chamado bem comum. Já não se trata apenas de questões de soberania, como são os casos da segurança e da justiça, mas o direito a ter coisas. Nesse sentido, à medida que se acrescentam direitos num ambiente de sufrágio democrático universal, as agendas políticas serão dominadas pelas forças que querem dar essas coisas aos cidadãos: maiores salários, menos horas de trabalho, quotas; educação grátis, saúde grátis e transportes grátis. Não se trata de liberdade (com a responsabilidade inerente), mas de sim da libertação do indivíduo em direção a uma criatura infantil, vagamente humana e inteligente, que não consegue viver sem ser à conta do papá Estado.

A crise provocada pela Covid-19 é uma clara ilustração desta infantilização coletiva. No caso de Portugal, os conflitos de interesses dos decisores e da maioria da imprensa aceleraram o processo democrático de captura da liberdade até níveis que poucos vaticinariam. Assim, foi com toda a facilidade que assistimos, em democracia, ao nascimento espontâneo de milícias de bufos e à aprovação e aceitação sem grande ruído de sucessivas leis atentatórias da liberdade de circular, de comerciar, de nos exprimirmos e de viver. Tudo isto em democracia…

Hoje, a Liberdade começa na resistência ao estado a que se chegou. Trata-se de contestar a extensão dos poderes democráticos a assuntos que não são passíveis de serem decididos democraticamente. Trata-se de denunciar os conflitos de interesses particulares, mas sobretudo este megaconflito que perpetua a compra de votos em troco do direito a ter coisas pagas por outros.

Porque, para quem preza a Liberdade, há coisas que não podem ser votadas.