1 Numa edição de 1980 da revista Análise Social, Pacheco Pereira escrevia: «O “vadio” alentejano é homem na chamada “pujança” da vida: entre os 25 e os 30 anos. (…) Numa memória inédita existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, de 1788, refere-se “o incrível número de celibatários que vagam por toda a parte, entregues ao ócio e à prostituição” e numas ‘Memórias para o Melhoramento da Agricultura’, escritas em 1821, fala-se do “contínuo giro em que anda a imensa cáfila de vagabundos, que, sem domicílio, nem ocupação alguma, tendo na maior parte robustez para todo o trabalho, se fazem pesadíssimos aos lavradores, que se não podem dispensar de os sustentar pelo receio de serem por eles insultados, ou em suas casas, ou nas suas searas, pastos e palheiros, a que eles com facilidade põem fogo”. (…) A imprensa dos primeiros anos do século XX continua este coro de protestos contra os malteses. As queixas são permanentes: “são contínuos os roubos pelos campos”, “a praga dos malteses […] agora infestam a freguesia de Cabrela”, “os malteses e os ciganos constituíram este ano ainda maior flagelo que anteriormente”, “os gatunos andam desenfreados por estas paragens – S. Cristóvão”, “a maltesaria é a praga daninha da agricultura”, etc. (…) Os malteses, trabalhadores rurais durante as ceifas, vagabundos o resto do ano, são responsáveis por numerosos roubos, atentados pessoais, incêndios de searas, rixas, extorsão de comida e outros crimes, cuja fronteira entre criminalidade individual e social, sendo difícil de traçar para cada caso concreto, é nitidamente de carácter social se a analisarmos no seu conjunto. Aliás, assim o reconhecia o I Congresso Agrícola (1888), exprimindo a opinião dos lavradores contra este estado de coisas: “estabelece-se a exploração da propriedade de outrem como indústria independente da vontade do proprietário” e pedindo “a enérgica repressão dos vadios, incluindo os ciganos, que tanto incomodam os proprietários, e muito especialmente no Alentejo e Ribatejo”. (…) A ameaça do fogo posto está presente na negociação dos salários. Em 1911, por exemplo, os grevistas ameaçavam os lavradores que lhes ceifariam as searas “com uma foice de 10 réis – uma caixa de fósforos”, o que não era uma ameaça vã, como os próprios lavradores sobejamente sabiam.»
Era um Portugal de enjeitados, órfãos, filhos de violadores portugueses, franceses, ingleses. Cheiro nauseabundo por todo o lado, pele encardida, unhas pretas, sem banhos, sem água canalizada, sem electricidade, as ruas de terra batida com bosta do gado, com a urina e as fezes dos homens e das mulheres, que o faziam nos regatos, atrás das figueiras, onde calhasse desde que salvaguardada alguma reserva de intimidade, o pasto e as saias a servir de papel higiénico. Partos em vãos de escada, nos palheiros, atrás de uma moita enquanto se arrancava o milho, se ceifava o trigo ou se puxava a junta dos bois. Pé descalço, cabeça raspada por causa do piolho, dentes podres. Sapatos novos uma vez por ano, para quem podia, mandados fazer a um sapateiro em tamanho que desse para chinelar e durar mais tempo. Calções rasgados atrás, para os garotos fazerem as suas necessidades sem constrangimentos. A criançada toda a dormir nos palheiros no Inverno, nas eiras no Verão. Uma palha para mergulhar no azeite que tinha sido esmola e deixar cair um pingo em cada pedaço de pão de centeio. Pão escuro para pobres; pão branco para finórios. Aguardente e figos secos para a manhã. Sopas de cavalo cansado, pão e vinho. Gente que mandava os filhos para casa de quem podia mais, para trabalhar, porque já não podia ter tantos à fome em casa ou na choça do pastor. Sete, oito, nove anos de idade. Tudo a servir, a esfregar, muitas vezes a fazer as vontades sexuais ao patrão quando era caso, ou ao menino da casa, para não casar virgem, para saber o que era uma mulher, para se fazer homem. Bastardia aos pontapés. Vadiagem. Malteses. Bandidagem. Roubos e pilhagens de miséria económica para justificar a miséria moral. Suicídios, homicídios, infanticídios. Sacholas na cabeça, tudo rachado ao meio, a seco, sem melancolias. E, sim, fogos postos.
2 Os meus avós foram, como já os seus avós, agricultores, proprietários, sim, mas pobres. Produziram mel, gado, azeite, milho, trigo, aveia e tudo o que possa caber nos chamados produtos hortícolas. Apesar de uma escala simpática, porque tinham propriedades e quem as tinha ainda conseguia viver uns patamares acima de quem não tinha nada, não foram, na verdade, mais que agricultores de subsistência. Muita daquela gente, explorando cada palmo de terra, cultivando tudo o que era possível cultivar, recolhendo mato até para fazer vassouras de uso doméstico, recorreu, já numa fase posterior, ao eucalipto como forma de ganhar algum dinheiro, graças à procura das empresas de pasta de papel.
O meu pai, os meus tios e respectivos primos foram os primeiros, em décadas, a não trabalhar na agricultura. Eu, aliás, fui ensinado desde cedo a olhar para a agricultura como algo muito duro de que me devia pôr a salvo. A geração dos meus avós, entretanto, deixou de trabalhar e morreu. As terras foram deixadas aos herdeiros, muitas em compropriedade, muitas embrulhadas em confusões jurídicas que só os velhos antigamente resolviam, não raras vezes com recurso ao tiro ou à sacholada e, na melhor das hipóteses, aos tribunais.
O mato, entretanto, tem crescido, a azeitona não se colhe e o que é lavrado só o é a custo, sem qualquer retorno e com esforço financeiro que a terra não compensa, entre licenças e mão-de-obra, de quem ficou com a terra nos braços e que não a vende, muitas vezes por falta de interessados. Boa parte daquelas terras, não estando ainda na posse da nova geração urbana, está a cargo de velhos sem capacidade física para nela trabalharem, com reformas mínimas e sem forma de as poder cuidar. A única coisa razoável que se vai podendo fazer é ceder gratuitamente a exploração das terras a quem ainda exista pelas aldeias que se queira dedicar à pastorícia e à agricultura. É o que nós fazemos: um agricultor local passa a usar as nossas terras como quer, usa o pasto para o gado, colhe azeitona, retira lenha, e nós ficamos a lucrar com a propriedade lavrada, limpa e, eventualmente, algum cabrito ou uns litros de azeite quando calha. É a gestão rural possível.
3 Eu não percebo nada de incêndios. Não percebo nada de organização do território, de geografia, de paisagem. Mas, perdoem-me a arrogância, ainda conheço alguma coisa do país que fomos e somos. Quanto ao resto, sobra-me ouvir quem possa saber alguma coisa sobre políticas públicas concretas e escolher, das várias opiniões que vão sendo ouvidas, a que me parece mais razoável e mais adequada a resolver um problema. Uma coisa é certa: esta época de incêndios trouxe-nos a vantagem de já não andarmos a perder horas televisivas de gente a perorar sobre os incendiários e o fogo posto como se isso fosse uma inovação das últimas décadas. Não é, como tentei explicar anteriormente. A grande novidade desta época de incêndios, a que já nos habituámos como uma fatalidade, é que parece começar a existir um consenso quanto à naturalidade dos incêndios e à impossibilidade de evitar cada um deles. Outra grande novidade é a mudança aparente do discurso público: aos poucos começa a abandonar-se a ideia do combate para falar da prevenção. Mas quanto a isto parece haver alguma coisa que nos impede de avançar com soluções práticas.
O próprio primeiro-ministro parece ter percebido, ao fim de mais de 30 anos de carreira política, o que algumas pessoas mais avisadas andam há anos a dizer: falar num Portugal sem incêndios é uma narrativa maravilhosa para propaganda política, na medida em que proporciona momentos de eleitoralismo como a entrega de dinheiro a rodos a bombeiros, avionetas, helicópteros, mas que transmite a ideia errada de que a gestão dos incêndios se faz no combate e não na prevenção. António Costa chegou mesmo a anunciar já ter compreendido que Portugal tem um problema decorrente da fraca rentabilidade da propriedade rural.
Sucede que este mesmo António Costa já tinha anunciado, em 28 de Junho de 2017, que «a única forma sustentável de prevenir incêndios florestais é através da reforma da floresta, para que esta seja uma mais-valia e não uma ameaça para as populações». Logo em Agosto daquele ano, o ex-ministro Capoulas dos Santos afirmava que «o Governo fez a maior revolução que a floresta conheceu desde os tempos de D. Dinis». Cinco anos depois, é o mesmo António Costa que afirma: «Temos que reintroduzir riqueza na floresta para que deixe de ser uma ameaça.» Estamos no ponto zero, portanto. Com a agravante de que, como a experiência da pandemia ensinou aos Governos, a responsabilidade agora é toda nossa, das populações, e que o poder político está apenas a gerir o desastre causado pela nossa irresponsabilidade.
Não haja aqui grandes ilusões: o poder, em democracia, exprime a vontade da maioria. Se em 2022 estamos neste nível de execução e planeamento de políticas públicas é porque a larga maioria da população assim o quis: foram muitos anos de narrativa contra os incendiários, a utopia dos «zero incêndios», a crónica «falta de meios». E tudo isto foi potenciado por uma elite urbanita que tem preferido ignorar um passado de brutalidade rural, e que tem estado nas últimas décadas mais disponível para esbanjar dinheiro no combate do que em investir dinheiro na gestão do território através da criação de economias locais que permitam fazer uma gestão equilibrada dos naturais ou menos naturais incêndios. Pessoas que realmente sabem alguma coisa do assunto, como Henrique Pereira dos Santos (há outros, eu é que simpatizo mais com as suas ideias e forma de comunicação), têm insistido nisto há largos anos. Mas uma política pública não se faz contra uma opinião pública (ou a parte dela que tem voz pública) que prefere comer abacate a comer cabrito; contra uma opinião pública que está mais interessada em «salvar o planeta» do que em gerir a paisagem rural do seu próprio país; que aplaude aquisições de helicópteros mas não está disponível para dar dinheiros públicos a pastores ou a proprietários rurais. Algumas almas chamam a isto «consciência ambiental».