Um deputado socialista disse que o Padrão dos Descobrimentos “devia ter sido destruído”, enquanto “monumento do regime ditatorial” (Observador, 19-2-21). Já muito se disse e escreveu sobre o Padrão cuja importância o dito parlamentar, pelos vistos, ainda não descobriu, mas vale a pena tecer algumas considerações sobre o caso.

Tem algo de fundamentalista islâmico, ou de laicismo radical, esta pretensão de arrasar qualquer monumento cultural que não corresponda às tendências politicamente correctas. É sabido como o denominado Estado islâmico, ou Daesh, destruiu criminosamente importantes vestígios arqueológicos. Também é conhecida a onda de ignaro vandalismo laicista que, recentemente, varreu a Europa e a América do Norte, destruindo ou danificando monumentos. Entre nós, não faltou quem grafitasse a estátua lisboeta do Padre António Vieira. Há, portanto, uma geração de fanáticos terroristas e de vândalos pós-modernos que quer destruir todos os vestígios de um passado que, decerto, denuncia e insulta a sua esterilidade cultural.

Claro que, se esta arrasadora moda pega, ao jeito da criminosa revolução cultural chinesa, será preciso destruir todos os vestígios históricos, porque nenhum tempo passado pode ser agora assumido na totalidade dos seus pressupostos culturais. Os painéis de São Vicente são machistas? Sejam então retirados do Museu Nacional de Arte Antiga! A obra de Eça de Queiroz é racista? Corrijam-se os seus romances e, já agora, aproveite-se para substituir as suculentas refeições aí referidas por ementas vegan, ou à base de sushi.

É curioso que este furor iconoclasta seja apenas num sentido: não se pode permitir nenhum símbolo fascista, mas podem-se engalanar as cidades com as bandeiras de um regime a que se ficaram a dever cem milhões de vítimas. Hitler era um monstro, mas Estaline, afinal, era um bom rapaz que teve azar na vida. Que hipocrisia!

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Mesmo que se quisesse restringir a purga às obras do ominoso Estado Novo, é óbvio que não se poderia ficar, apenas, pela destruição do dito Padrão dos Descobrimentos. Com efeito, mais grave é a obra emblemática do Estado Novo: a ponte inaugurada com o nome do ditador e que, por isso, constitui, mais do que o Padrão, uma inadmissível provocação. Será que quem propôs a destruição do Padrão, também exige a demolição da ponte que foi Salazar e que agora se chama 25 de Abril?!

A questão onomástica tem que se lhe diga. O Professor Adriano Moreira, que foi ministro das colónias de Salazar, conta nas suas memórias que, em São Tomé e Príncipe, teve uma rua com o seu nome que, depois da independência, passou a ser Rua ex-Adriano Moreira!

É razoável que um regime político reveja a toponímia, desde que respeite alguma coerência histórica. A primeira República substituiu os nomes monárquicos por denominações republicana: não há terra que não tenha uma Avenida da República, 5 de Outubro e Almirante Reis! Paradoxalmente, levantou uma imensa estátua ao Marquês de Pombal, que foi um déspota ao serviço de um rei, para festejar a expulsão dos jesuítas, a primeira ‘reforma político-administrativa’ referida no seu pedestal, e que a primeira República, furiosamente anticlerical, imitou, exilando os membros da Companhia de Jesus. O Estado Novo foi mais comedido: em Lisboa, por exemplo, não havia, até à inauguração da ponte sobre o rio Tejo, nenhum largo, avenida, rua ou beco com o nome de Salazar.

Mesmo que se admita a alteração da denominação da antiga ponte Salazar não é, contudo, lógica a sua nova designação: não faz sentido que o regime democrático, nascido a 25 de Abril de 1974, se aproprie do que foi feito precisamente pelo sistema político que derrubou! Mesmo que se admita que a ponte, baptizada Salazar, seja crismada com um novo nome, não é lógico que esse seja o da data do golpe de Estado que pôs termo ao regime a que se ficou a dever essa belíssima obra de engenharia! Teria sido preferível dar-lhe um nome topográfico, como Belém, Alcântara, Caparica ou Almada (esta última hipótese, não sei porquê, agrada-me especialmente …). Para evitar interesses pessoais ou bairristas, melhor seria dar-lhe um nome consensual, como Cristo-Rei, já que é a seus pés que se unem as duas margens do rio Tejo. Tudo menos … 25 de Abril! Com efeito, esta data – que poderia ter sido, muito legitimamente, atribuída à ponte Vasco da Gama – é, em relação à ex-ponte Salazar, uma incoerência histórica.

É verdade que, em Portugal, há uma especial pontaria para acertar em denominações inconvenientes, como foi a atribuição do nome do malogrado primeiro-ministro, morto num acidente aéreo, a um aeroporto! É óbvio que Sá Carneiro merece figurar na toponímia nacional, mas foi muito infeliz a escolha do aeroporto de Pedras Rubras para esse efeito. Podia-se e devia-se ter dado o seu nome a uma avenida, a uma praça, mas nunca a um aeroporto. Imagine-se o terror dos turistas que, de viagem de avião para o Porto, se inteirem do trágico fim de Sá Carneiro: ficarão aterrados, antes ainda de aterrarem!

Se pega a mania de crismar, com nomes politicamente correctos, as obras do passado, qualquer dia Os Lusíadasserão atribuídos a José Saramago; o Castelo de São Jorge será o Castelo Otelo, que até rima; o bairro da Brandoa mudará de género, para imortalizar o ministro da educação; o mosteiro dos Jerónimos designar-se-á no singular, em honra do camarada secretário-geral do PCP; o Alto de Santa Catarina substituirá a piedosa referência pela terminação Martins; a Avenida da Liberdade passará a Avenida da Impunidade, em memória de um ex-primeiro-ministro socialista; a Fernão Ferro se acrescentará Rodrigues; à Costa da Caparica se anteporá António, em honra do nosso primeiro; ao Hospital de Santa Marta acrescentar-se-á Temido; e o mesmo se fará com Freitas, ao Largo da Graça, em homenagem à dedicada Directora-geral da Saúde…

A questão não é só de monumentos e nomes, que têm também a sua importância, mas cultural: o que está em causa é a preservação da identidade nacional e do património artístico. Ao presente pede-se que respeite o passado e construa o futuro, sem revisionismos anacrónicos, nem hipócritas censuras. À proposta de demolição do Padrão dos Descobrimentos, dever-se-ia responder com a construção do prometido Museu das Descobertas. Em boa hora o Governo se empenhou em concluir o inacabado Palácio Real da Ajuda, e vai criar, nesse novo espaço, o Museu do Tesouro Real, duas magníficas joias que evocam os quase novecentos anos da gloriosa História de Portugal.