É fácil, compreensível até, culpar o governo pela crise que enfrentou pela recente escolha de governantes. É fácil, também, culpar a oposição por não ser mais eficaz no seu escrutínio. É fácil, em suma, culpar os políticos. Mas esta crise aponta para um problema mais profundo: em Portugal é melhor não fazer ondas. Os sucessivos desastres militares russos, de que o mais recente foi o ataque a um aquartelamento em Makiivka, no Donbas ocupado, são expressão extrema da impossibilidade de desafiar Putin e a dificuldade, por isso, em aprender com erros passados. São crises bem distintas, mas, eventualmente, com algum traço comum.
Faz-te de morto
A minha paciência para a politiquice é escassa, mas faço um esforço. Podemos não nos interessar pela intriga política, mas o poder político tem por missão interessar-se por nós. Num país pobre e de oportunidades limitadas, como Portugal, o Estado tem muito poder. Pelo que percebi, a ex-nova Secretária de Estado do Tesouro é uma gestora competente. Estará habituada a ganhar somas que parecem escandalosas para o comum dos mortais num país com salários médios miseráveis. Também tenho dificuldade em perceber como se pode receber meio milhão de euros para sair de uma empresa intervencionada pelo Estado, se meses depois se vai dirigir uma… empresa do Estado e se segue, depois, para o governo. Custa, sobretudo, a perceber que o nosso sistema política não tenha encontrado um sistema de melhor de escrutínio prévio dos membros do governo e altos funcionários.
Mas também é muito reveladora e importante a razão de ser dessa indemnização, a origem destes problemas. Tanto quanto percebi, Alexandra Reis entrou em choque com a nova presidenta da TAP. Violou a principal regra de funcionamento de grande parte das instituições portuguesas: não fazer ondas, não ter opiniões próprias, não discordar da chefia. Num país tão clientelar e deferente, o que é espantoso é que Alexandra Reis tenha chegado tão longe.
Quanto ao ex-ministro Pedro Nuno Santos, pode-se concordar ou discordar das suas posições públicas, mas é dos poucos ministros que tem uma voz própria, e que parece ter uma visão estratégica para o país. Com isto não estou a defender o caos no governo, que se fale a despropósito, e menos ainda que se mantenham governantes com rendimentos questionáveis. Mas é claro que o grau de autonomia dos ministros tem vindo a decair nas últimas décadas a um ponto extremo. Pedro Nuno Santos provavelmente já devia ter saído há mais tempo, mas é louvável que se atreva a demitir-se quando entende, e não apenas quando o deixam.
A ditadura do Estado Novo caiu e com ela o regime corporativo, mas o corporativismo, com a sua inércia e deferência, continua de boa saúde em Portugal. Daí que o conselho de Mário de Figueiredo, braço direito de Salazar, aos jovens deputados da União Nacional, infelizmente não parece, hoje, completamente deslocado: “em política, se queres viver, faz-te de morto!”. Será terrível se a lição desta crise for consagrar a ideia de que o melhor é não fazer ondas, não ter ideias próprias.
As derrotas da Rússia e generais incapazes de aprender
Independentemente de evolução da invasão da Ucrânia, é já claro o seu terrível custo em vidas e o acumular de erros militares russos. Quase nos esquecemos de que o Kremlin começou esta guerra com a Ucrânia com uma vantagem de, pelo menos, 10 para 1 nas principais capacidades militares: artilharia, carros de combate, navios, aviões. Como foi possível o David ucraniano derrotar já, por várias vezes, o Golias russo? Como sempre num conflito assimétrico, o lado mais fraco precisa de lutar de forma mais inteligente e mais irregular. Outro fator fundamental é a assimetria de vontade: os Ucranianos estão mais determinados a combater para defender a sua independência e impedir uma ocupação brutal do que os “voluntários à força” russos, enviados para uma guerra sem treino, sem mapas, sem equipamento, sem comando unificado, sem instruções. A Rússia perdeu a batalha de Kiev, perdeu a batalha de Kharkiv, perdeu a batalha de Kherson e não está a ganhar a batalha do Donbas. Infelizmente, isso está longe de equivaler a dizer que a vitória da Ucrânia está garantida, embora, incrivelmente, seja uma possibilidade.
Para já é importante perceber melhor como foi possível à Rússia perder desta forma sucessivas batalhas. Dada a assimetria que referimos, não é estranho que as tropas russas tenham conquistado algum território ucraniano – o que é incrível é que tenha ocupado tão pouco e, entretanto, perdido tanto. O morticínio massivo de soldados russos, como resultado do ataque ucraniano neste início de 2023, em Makiivka, é muito revelador. Não sabemos o número exato de soldados mortos. Mas é significativo que ele tenha sido tão grande que as autoridades russas não acharam possível esconder o caso e já tenham reconhecido 89 soldados mortos. O que também é certo é que este quartel improvisado não estava devidamente protegido. Pior, segundo algumas fontes, o aquartelamento teria sido usado também como um paiol improvisado, resultando numa explosão muito maior e mais mortífera. É possível que o uso de telemóveis pelos soldados russos tenha facilitado a localização do alvo pela artilharia ucraniana, cada vez mais bem equipada e treinada. Mas o cerne do problema é bem sintetizado por um dos nacionalistas russos que, desde 2014, mais se tem empenhado no desmembramento e ocupação da Ucrânia, Igor Girkin: “os generais russos são estruturalmente incapazes de aprender” com os erros passados. Porquê? Porque Putin criou um sistema de poder pessoal em que competência, honestidade e mérito não importam, só conta a lealdade cega ao chefe. Colocar demasiadas questões é mau para a carreira e pode ser fatal para a saúde. O resultado é um exército russo que há meses lança vagas de soldados como carne para canhão em sucessivos ataques frontais contra Bakhmut para conquistar uma casa, como confessava recentemente Yevgeny Prigozhi, o principal promotor desta carnificina e dono do Grupo Wagner.
Nunca subestimei o perigo que a Rússia, mesmo enfraquecida, representa. Putin pode escalar o conflito de formas perigosas. Aliás, já o fez nestes meses com a tentativa de tornar a vida impossível aos civis ucranianos através de ataques aéreos. Mas sem uma mudança significativa, não vejo como as tropas russas poderão obter melhores resultados em futuras ofensivas terrestres. O problema é que uma mudança radical na instituição militar russa seria quase tão arriscada para o regime de Putin quanto uma derrota militar na Ucrânia.