Repousa um pouco os olhos cansados de tanta guerra, meu irmão. Cansados de tanta raiva e sectarismo. Repousa e pousa-os sobre este nosso país amável, o Portugal de antigo do orgulho e da liberdade. Aqui, meu irmão amigo, há mesmo liberdade, somos todos filhos de uma só raça – a palavra também pode ser usada para o bem, sabias? -, um povo verde vermelho e de todas as cores, com ganas de viver, astúcia e competência. E, vês, com alegria.
Descansa, meu irmão, na capital do meu país, Lisboa: passeia-te pelas igrejas da cidade, convive com Camões e Gama, entra no silêncio da fé apaziguada, onde cabem como devem caber todos os mortais, cristãos, ateus ou de outra fé qualquer, descansa das atribulações de um tempo atribulado. Dos males quotidianos afasta os olhos irmão, contempla longamente como quem os saboreia os azulejos da Madre de Deus, as telas setecentistas de Vieira Lusitano e a capela de São João Baptista na Igreja de São Roque, d’ouro, marfim e lápis-lazuli.
Passeia-te por Lisboa irmão, longe do afã dos dias: ignora as parangonas sobre negócios e esquemas ignóbeis e contempla a fachada do chão martelada por artesãos com mãos de fada e uma antiga sabedoria; orgulha-te como nos devíamos orgulhar (mas não) da filigrana fina nas paredes, na calçada, nos telhados das urbes velhas deste país de marinheiros.
O Ocidente morre, irmão, ensimesmado, confundido no seu sonho de grandeza e omnipotência, incapaz de se erguer à altura dos princípios magníficos que inventou e de viver de acordo com eles, incapaz de ser capaz da grandeza com que sonha. Sufocado pelos pecados cometidos, como se fossem só seus, sua culpa exclusiva, universal e eterna, sobretudo eterna, prenhe do pessimismo ontológico de que fala o filósofo, o Ocidente fenece; e só vive ainda, de viver vivo, neste país aqui. Entre o Ocidente a oriente e o Ocidente ocidental está Portugal: de cá se fez ao mundo pelos caminhos do mar, aqui radica, daqui sobreviverá.
Sabes irmão, meu cansado irmão da guerra, de vez em quando alguns de nós proclamam que não valemos nada, somos a mais insignificante das nações, preguiçosos e incompetentes, incapazes de nos governarmos. Ora tu sabes, meu irmão que calcorreias os caminhos deste país de transeuntes – transitoriamente motorizados -, como é difícil acreditar nisso. Belo, amável, seguro, competente, histórico. Porque lidamos tão mal, e precisamos tanto, dos elogios alheios? Selo de qualidade da nossa cultura; da nossa gente; do nosso país?
Vem comigo, meu irmão, ver este país de Marinheiros – “o meu país das Naus, de Esquadras e de Frotas” (António Nobre) -, onde é bom sofrer, nem que seja de saudade, porque sofrer de saudade é bom: os portugueses, irmão, navegam hoje as estradas e os céus da terra, à procura de uma vida melhor, mas levam consigo o seu país pois não há nenhum melhor para viver: assim somos, sabes, refugiados silenciosos no tempo do clamor dos refugiados, dos que fogem dos matadouros da terra e buscam a Ocidente, no decadente e moribundo Ocidente, segurança e refrigério. E nós, inventores da diáspora feliz, permanecemos os guardiões da nossa civilização e continuamos a navegar, porque navegar é preciso.
E o que buscamos, irmão, se tudo o que buscamos existe entre nós? Também não sei. Ouves os políticos deste país e temes por ele; ouves os banqueiros deste país e temes por ele; ouves os empresários deste país e temes por ele; ouves os autarcas deste país e temes por ele; ouves as elites e, meu querido irmão, temes pelo país. Mas depois viajas, cruzas o rectângulo de sul a norte, e repousam-se-te os olhos cansados. Vinhas no avião e, à vista da costa ocidental da Europa, lias ainda com o coração cheio novas deste país: melhor destino, melhor praia, melhor golf, melhor hotel, melhor cidade; o Douro, o Porto, o Alentejo, o Algarve.
E chegaste e ouviste as gentes. Tocou-te a gentileza (pena o taxista ter tentado enganar-te); consolou-te a culinária; marcaram-te os artistas, cientistas, desportistas (Vhils, aka Alexandre Farto, a cientista Maria Nunes Pereira, “o” Ronaldo na Forbes 2015?); impressionou-te, és assim, o talento e vigor dos jovens empreendedores (“young portuguese entrepreneurs conquer Silicon Valley”…). Ouviste e leste e falaste, conquistado como tantos ao longo das eras e, meu irmão descrente, deixaste de temer pelo país. E afinal, pensaste, de cabeça repleta da melancolia cantada pelos poetas, de Nobre a Garrett, Andrade, Al Berto, afinal, há alegria. “What a joyfull country”, exclamaste.
Descansa, irmão, das fadigas das viagens, do desalento da impiedade, da maldição dos poderosos. Nós por cá já percebemos que os donos disto tudo na verdade pouco possuem. Sofremos com os abusos, ainda estamos a recuperar, há muito a recuperar. É possível que nos próximos anos se sintam as consequências da depredação, irmão, mas até isso há-de passar. Até talvez ainda não saibamos tudo, de tal modo os poderes – as facções de um e outro lado – se conjugaram para nos confundir. Mas passará, como sempre. Ficaremos de pé, testemunhas vivas e irredutíveis dos valores do Ocidente.
Original rima com Portugal: somos o povo sempre em pé. Gentil e tolerante, compassivo e paciente. Mas não abusem da nossa paciência. Repousa um pouco os olhos meu irmão, cansado de tanta guerra. És bem vindo a este país, venhas de onde vieres. Sejas quem fores. Desde que venhas por bem. Fica bem.
Em meu nome e no do meu irmão estrangeiro bom ano de 2016. Um feliz ano para todos os portugueses.