Com tantos assuntos para tratar, chegada a época em que o calendário diz ser verão mas o anti-ciclone dos Açores avisa “ainda não”, perguntei-me como poderia proporcionar aos leitores do “Observador” alguns momentos de descontração, sem deixar de abordar os temas mais actuais. E lembrei-me de recorrer, pela segunda vez, aos epigramas da minha avó.

Se se recordam, são “baboseiras”, palavras vulgares, lugares-comuns (isto é, comuns no tempo da minha avó, que viveu ainda a 1ª República e o depois) contra os cânones e em nome de sentimentos nobres que já quase não valorizamos. Epigramas da minha avó, elevação das mentes jovens, aplicáveis a alguns dos temas deste verão outonal de 2018. Ah, e claro, a semelhança com personagens e factos reais talvez seja apenas coincidência; talvez. Ei-los:

  1. Vamos então esquecer Eça/ que era mais um estrangeirado/ e nunca foi boa peça/pois vivia no passado
  2. Procurei entender o que dizia/e tudo o que dizia eu entendia/mas quando começou a executar/fez tudo o que dissera e, temerário,/fez também o seu exacto contrário
  3. Se alguém ao encomendar food (fud)/em vez de um entrecôte pede um shot (shóte)/é como se tivesse dito would (uude)/querendo afinal dizer would not (uude note)
  4. Foi só um olhar sem gozo nem paixão/por sob as rendas, os colchetes e o colchão/mas ela célere pilhou-me esse vislumbre/e acusou-me de assédio e de deslumbre/ metoo (mitu) metoo (mitu) gritou e sem remissão/tornei-me um pária./ Fiquei sem chão
  5. Com que então caiu na asneira/de dizer na sexta-feira/Descobrimentos/ que tolo!,/ainda se o desdissesse,/ mas dizê-lo não parece/de quem tem muito miolo
  6. Há coisas que não têm graça/não fora na sua desgraça/mostrar do tempo que passa/a verdadeira ameaça./Coisas que rimam com sul/gângsteres vestidos de azul/sacos sem fundo e o país/a sangrar pela raiz
  7. Tem razão o presidente/ao exigir mais esforço/ao resto do Ocidente:/em 12 mil milhões de armamento/qualquer por cento/é suficiente
  8. Volta para a tua terra vagabundo/lá porque nasceste aqui/não podes ficar aqui/ é vasto o Mundo/não tens para onde ir, paciência/volta para a tua terra de preferência
  9. A ingratidão desloca o eixo da natureza/diz acossado o antigo presidente,/que recordando de Lear a lição/qual Guttman presciente intui/sem mim nunca sereis campeão/como eu não fui
  10. Encostados à parede nas trevas/em dhamma os 13 eram sem Ego/ conhecendo-se a si-mesmos/venceram o sofrimento/e acolheram a salvação com um sorriso
  11. Deixai vir a mim as criancinhas,/ guardá-las-ei seguras e em concórdia/a aguardar a libertação dos pais./Chamem-me misericordioso
  12. Na Europa ecoa o grito inclemente/ O apelo da tribo regressou/soando o fim dos tempos do Ocidente
  13. Aconteceu num dia tarda a noite/a ronda arredondada latamente/que um larápio buscando munição/levou por desfastio o arsenal/mas não faz mal/É Portugal
  14. Eis aqui o meu currículo excelência./Ena! vejo que foi fellow da ivy league./Por uma semana inteira!/E até foi astronauta?!/Vivo na lua excelência…/Quer então este lugar?/Para ele eu sou sem par!/Pois é sua esta docência,/seu cv me convenceu./ (ninguém mente como eu)
  15. Entre a trivela certeira/e o livre direito à rede/fica o imenso vazio/que nos acicata a sede
  16. Taxa aqui taxa acolá/eu vou ganhar esta guerra/e se ousares retaliar/taxa ali taxa acoli/eu mando os porta-aviões/fazer-te um haraquiri
  17. O ciático inflamado/é uma síndroma lixada/que faz incerta a passada/e o olhar esgazeado
  18. Num dia de grande emoção/já lá vão talvez dez anos,/escrevi um palavrão/ numa rede social/e depois esqueci-me dele./Hoje fui despedido/quando o meu patrão ferido/me mostrou o palavrão/esquecido…
  19. E esta, hem?, diz o Pessa/ora essa, fora o Eça
  20. Há 100 anos acabou a guerra/que acabou com todas as guerras/era pelo menos essa a ideia da pistola de princip/mas de boas intenções está a europa cheia
  21. Eu show Donald/e era bom que não fosse mais do que isso/mas suspeito que me engano
  22. De tudo o que na vida me arrependo/do que eu mais me arrependo, sofro e cismo /é não ter arriscado mesmo tudo/jogando tudo ou nada em paroxismo
  23. Chegou ao café Maravilhas/com o stock das armas roubadas/mas ninguém lhas quis comprar/estavam todas estragadas
  24. O general amuou/por lhe negarem o brinquedo/e em perfeito português anunciou/au diable je m’en fous/e abandonou a cimeira/num ataque de ciumeira
  25. Se o Reino Unido não sair da União/e pedir prolongamento do cinquenta/sugiro então que a União /saia de vez do Reino Unido e do escocês
  26. Nenhuma acantologia está completa/sem um verso de amor e de paixão./Amo-te então, mulher da minha vida/razão de ser/da vida e de viver
  27. Enquanto os nossos filhos aprendem a nadar/numa piscina bem comportada/sob o olhar vigilante de um professor/milhares de filhos de Outros morrem afogados/na banheira cálida do Mediterrâneo/sob o olhar vigilante/da Europa

(e não, a minha avó não era de esquerda, pelo contrário, aliás. Mas tinha coração)

  1. Adoro futebol falado/muito melhor que o jogado /que é um bocado parado
  2. Tendo a concordar comigo/mas nem sempre consigo
  3. O pensamento crítico morreu./a ciência é um ponto de vista./a inteligência um instrumento do poder./a ignorância a suprema conquista

Na Tailândia, o milagre da gruta: jovens educados pelos ensinamentos do Buda, renegando o domínio absoluto do Eu e em reflexão colectiva como via para o Nirvana, sobreviveram duas semanas. Na Europa, no Ocidente, onde o Eu narcísico domina, ter-se-iam dilacerado, suicidado, desesperado, quiçá canibalizado. Na Tailândia, tudo se passou longe dos holofotes, por cá as câmaras estariam instaladas dentro da gruta, empatando os resgates, e os jovens seriam recebidos por uma chuva de flashes e perguntas à saída do cativeiro.

Que fazer? Mudar, para influenciar a mudança antes que a mudança nos mude.

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