1   Dizem Agosto o mês “dos outros”. Esses  anónimos “outros” que fiquem  com o ruído,  entalados em filas escaldantes de automóveis, correrias apressadas, lotações esgotadas em praias, mesas, esplanadas, parques; sobrelotação em supermercados, caixas de pagamento, estacionamentos; impaciências de alto grau na imprevista procura de um dentista ou de uns óculos. Isso: Agosto fora de casa. Mas talvez porque agora, que já foi passando, doce ou dolorosa, muita vida sobre cada um dos nossos verões, estou cada vez mais certa de que não se pode deixar encaixar assim Agosto, em tão má reputação. É preciso saber lidar com ele, descobrir-lhe o avesso e não, não penso em “resorts” — detesto a palavra e a entediante vida que ela propõe —, nem em fantasiosas escapadas para descampados com uma tenda às costas.

2 O mês dos “outros”? Depende. Nunca deixaria difamar o nosso Agosto, apesar de duro, hostil, brumoso, atlântico. Ondas altas, maresia, neblinas, mas de repente, sem pré-aviso, quietude e suavidade. Foi uma escolha. Agosto sempre aqui, cheio e vivido desde que formei a minha própria família, cada vez mais vivido e mais cheio desde que ela cresceu e se multiplicou. Hoje somos muitos — em casa, à mesa, no jardim, no futebol, no cabanão, nos mergulhos, nos concursos, nos jogos. Nas conversas: intergeracionais, participadíssimas, de mais que um credo político ou um credo tout court. Tudo, absolutamente, se discute. Das próximas moradas universitárias ao segredo de uma receita de cozinha,  do quem lê o quê aos mergulhos de cabeça ou aos golos do dia. E, claro, a política: de André Ventura a Rui Tavares, com o que interessa no meio. Já havia talentos pictóricos, agora há uma “realizadora” de 16 anos a captar a vida com a sua câmara, coadjuvada por um “escritor” de argumentos, de 14.

De vez em quando saímos deste oeste, uns para norte outros para sul, mas são breves intervalos, voltamos sempre. Uma escolha, sim. Apesar do irremovível nevoeiro matinal e (só às vezes, não exageremos) da camisola às sete da tarde. Virar Agosto do avesso para celebrar a “única estação” como Ruy Belo meu poeta, chamava ao verão. Apetecida estação.

3 Mas Agosto não é só isto, que já seria muitíssimo, e de hossana obrigatório. Há mais. Há aquilo de que também se é capaz, neste movimento contínuo. Com a vida fui aprendendo que nos compete saber inventar ilhas desertas ou fabricar silêncios para que uma vagarosa contemplação possa ter as honras do tempo. E assim me demoro a observar e absorver as coisas, o campo, o recorte da paisagem, o nevoeiro a entrar como se fosse uma pessoa. Os filhos e os netos. Revendo mais um dia que passou, esperando que a noite que se anuncia traga com ela a certeza de que amanhã será assim, igual a hoje, a ontem, a sempre, mesmo que não seja. Como estas nossas imensas praias que sendo sempre as mesmas, devido ao capricho das marés, nunca são:  ao alvorecer a geografia é uma, ao entardecer, outra.

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4 Há momentos tão únicos de contemplação que parece que os roubo ou então que estão no avesso. O inconfundível começo da manhã feito de grato emudecimento no areal vazio onde só há o Atlântico, a essa hora quieto ou despedaçado em espuma no ar salgado da praia;  a tarde preguiçosa do campo, envolta numa quentura espessa, ou já tingida pela humidade da “cacimba”, nunca se sabe, habituámo-nos a esperar tudo; há a luz a esmorecer para dar lugar à lua, por enquanto um ponto brilhante que observamos longinquamente a ganhar forma. Tudo sempre igual sem o ser, mesmo que  as horas e os dias, apesar de retalhados em rotinas, escorram na sua inteira plenitude, e só o crepúsculo antecipe a sua despedida. E há a confiante certeza de que, se eu sair de casa, conheço cada árvore e cada curva do caminho, os  muros debruados de hortênsias, os portões das casas, o rumor alto dos eucaliptos, as colinas ao longe. E a barragem aqui recentemente criada que foi uma novidade e hoje já não é, e onde dantes andávamos num barquinho e já não andamos. Tudo igual sem o ser, sim.

5 Em Agosto, quando observamos a noite a organizar-se sobre os povoados já adormecidos e no terraço ouvimos o latido dos cães da “casa dos primos” aqui ao lado, percebemos o que pode ser uma imutabilidade a que talvez possamos chamar felicidade. Estes dias e estas noites, as vozes e os risos familiares,  a claridade e o crepúsculo, o tamanho azul do oceano, as ondas, o calor, os caminhos de terra, a cor das flores. O verão. Agosto.

Este Agosto.

P.S.: Eriksson. Quanto saudade — antiga, de sempre, e não apenas agora. Um príncipe. Nunca esquecerei o ser humano que ele era, para quem a decência, a dignidade, a delicadeza passavam à frente de uma qualquer bola a correr sobre um qualquer relvado, de um qualquer país. Também não esquecerei o seu olhar claro e aquoso, o sorriso doce, a afabilidade do trato. Entrevistei-o uma vez na sua casa do Guincho, desafiei-o uns tempos depois para jantar em nossa casa: ele veio, talvez por perceber, como eu, que a súbita sintonia daquela conversa teria de durar sem gravador . E, outro dia, pedi-lhe a ele e a Artur Jorge — mas quantos mortos já conto eu? — que se juntassem a mim para uma conversa na véspera do jogo decisivo entre o Porto, de Artur Jorge, e o Benfica, de Eriksson, para o campeonato desse ano. Dois cavalheiros frente a frente, servindo o desporto e honrando a competição. O que é outra maneira de evocar aqui — com uma certeza mágoa — um Portugal hoje esquecido mas onde estas pessoas existiam e estas coisas aconteciam.