1 Tudo parte deste oeste atlântico: houve dois que abalaram para Londres, quatro que aterraram da Colômbia, outros que rumaram a sul (“ah, mas voltamos logo”) mas todos estacionam para ficar. Nas duas casas, aqui pousados, a alteração da ordem é automática, as movimentações ruidosas, os horários perdem-se como se fossem um chapéu de chuva. É, na previsibilidade da sua própria repetição, aquilo a que vulgarmente se chama o “verão” mas que por cá se intitula caos: casas a deitar por fora e o alarido como instalação sonora. Fui-me habituando. Há anos escrevi algo de parecido porque já era isto mesmo. Descobri à minha custa – com aquele misto de gratíssima felicidade e de crispação non-stop com que se tentam domesticar as férias de filhos e netos – que esta estação do ano deveria ser só um apeadeiro, ou, por exemplo, uma coisa intermédia: ah que pouco ela coincide com a glória solar da “única estação” como lhe chamava Ruy Belo, meu poeta, evocando o verão… Ano após ano, os nossos verões – o meu e o do poeta – pouco coincidem: a bênção de comandar a tribo familiar é sempre imediatamente traída pela própria impossibilidade da tarefa e denunciada por um sistema nervoso a dar de si (o meu).

2 A nossa morada enche-se alegremente de residentes – filhos, netos, sobrinhos, primos, parentes – e de passantes: aqueles amigos de uns e outros que foram adquirindo uma espécie de “direito natural” a serem passantes com cama, mesa e roupa lavada. As enchentes – aos solavancos – conseguem ainda a proeza de serem indecifráveis quanto a datas de chegadas ou partidas, “oh, mãe, eles coitados (coitado de quem?) ainda não sabem ao certo…”. Qualquer pequena, média ou grande dona de casa se desnortearia por menos: os víveres acabam sempre “antes”; os residentes&passantes estão sempre (impossivelmente) famintos e com pressa; atrás deles há sempre um rasto de toalhas, mochilas, telemóveis, chaves, iPads, livros, legos, bóias, jornais, jogos e outros díspares objetos – por vezes misteriosamente abandonados para todo o sempre, no sítio onde pela primeira vez foram largados. Quando pergunto a quem pertencem os pertences, “ah, avó, deve ser do…”, ou “não sei, talvez seja da…”. Deles próprios nunca é. As reclamações são vãs: toalhas, t-shirt, ténis desirmanados ficarão dias a jazer dentro ou fora de casa. Será o verão uma sucessão de “pintura de cenas em vão”, como aqueles grandes frescos que nos contam histórias? Não sei, constato.

3 Fazem-se e desfazem-se camas a alta velocidade, avança-se com 32 graus centígrados para lavandarias quando a máquina de lavar ameaça esvair-se; abrem-se e fecham-se incessantemente frigoríficos, o seu interior some-se também incessantemente a altíssima velocidade. Com líquida fluidez, o dinheiro também se some. Até o próprio tempo (quem diria, em “férias”?…) se dilui em contagem decrescente — é sempre preciso “ir”: ao supermercado, à praça, aos jornais, à farmácia, ao parque. Ou ao terrível e temível aeroporto, levar e trazer os membros da tribo que chegam ou partem das geografias onde vivem.

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