Andava há tanto tempo à tua procura que o tempo quase se me esgotava. Um longo período em busca de uma razão para permanecer, com quase tudo acabado e débeis reminiscências de bom tempo. Buscava e não te encontrava. Sentia saudades; persisti.
Veem-me e o que veem? Um trapo humano, um rosto ressequido de pergaminho, sulcos cravados a ferro de tempo, tempo passado. O que hoje sou: tempo passado.
Veem-me e (tenho espelhos em casa) veem um boneco de trapos que se move. Um boneco de cera a derreter. Mãos lisas e perfeitas tocam as minhas e sulcam veias azuladas salientes, quase negras de escuro sangue, contemplam com desgosto e algum desdém as manchas traçadas pelo negrume da noite anunciada das minhas mãos imprestáveis e ossudas, lanças calcificadas espetadas nelas, perfeitas e lisas mãos.
Sou velho. Comecei a sê-lo há anos, lentamente. Primeiro umas dores sem importância nas articulações, as letras pequenas a afastarem-se, as radiografias cada vez mais esfuziantes, um quisto, duas sombras, três bloqueios. E os medicamentos, perpétuos companheiros, para a tensão, o colesterol, a gota, os olhos, os diabetes. Uma forma de adiar o tempo que o tempo das tecnologias tem.
Escutei Brel na esperança de descobrir pistas para te encontrar. E descobri-as, mas não eram tu, descobri que vivo na província em pleno campo de ourique, que o gato morreu (ah, pobre gato que nunca tive, pequeno, sedoso, ronronante no meu colo imaginário), tomei consciência que o vinho de domingo já não me faz cantar. E quanto eu cantei, rimas fortes e doces pelas noites quentes dos nossos serões na casa da praia! Nos pátios abertos em matines de amigos, entre risos e graças com graça, quando ninguém falava de doenças nem da parede que está ali, ali já, vês?… tão perto.
Depois recordo-te do tamanho do meu punho, pequena criatura saída dos anos em que o tempo ainda era infinito, elástico, indiferente às explicações científicas, imune a quaisquer forças, mesmo a gravidade, menos o amor. Recordo-te e deposito em ti, surpreendido por ainda estar aqui, a esperança que me resta. É isso mesmo, surpreendo-me por não estar já mais longe, mas persisto e procuro e não peço desculpa, procuro há tantos anos, ouso ainda buscar. E se durar não passa de um sonho arrastado; se a pedra lascada a que hoje me agarro me diz de partir com uma fria dureza; se há coisas sem alma nos dias que vivo e passeio na rua sem me ver a sombra; se a secura mineral do mundo das pedras me chama à razão, me diz de partir, já não ser daqui: eu ergo-me nu, alçando-me ao tecto da minha impotência e digo que não: ainda sou daqui.
Eu ainda cá estou.
Tu, até tu a quem chamo meu – meu filho, meu amor, meu tesouro -, a quem procuro e não estás, mas sei que atendes, sempre atenderás, mas não estás, já não buscas o meu colo, o meu abraço, o meu conselho, falas-me como se o filho fosse eu e eu faço de conta que sou – o teu filho, teu amor, teu tesouro. Procurei, procurei tanto tempo. Procurei e não estavas. Recordava a época dos 25 anos quando, como Gabin, sabia tudo: “o amor, as rosas, a vida, o dinheiro. Ah, sim, o amor”. Ao procurar percebi: 60, 70, 80 vezes soou na sala o relógio e ainda não sei nada. Não to direi, mas sei. Não sei nada.
Hoje desci a avenida, atravessei ruas pelos semáforos e reparei nos outros eus em desfile por aí. São feios, reparei, encarquilhados e gastos. Homens e mulheres de cabelo ralo e olhos espetados, reparei. Reparei nas roupas gastas, os pés arrastando. Pensarão no tempo em que tinham trabalho e eram tratados por doutor – ou só senhora -, eram respeitados e recebiam carinho? Deixei as ruas. O rio. O meu rio, ancoradouro da vida que vivo (que digo? Que vivo?). À beira dele corriam corpos musculados perfeitos, vejo-os correr e não são como eu que não posso fazê-lo, com as articulações coladas e o ventre dilatado e oco. Lembro-me do dia em que te foste, amor da minha vida, e me apeteceu nadar até ao outro lado do rio e depois mais além, nadar oceano fora, em busca de outra coisa. Nunca soube o quê. Agora, ainda que quisesse, não o poderia fazer.
Postei (é um verbo, sabem, vou-me actualizando) algum tempo no Facebook. A minha foto de capa era de quando tinha 5 anos. Eu quis sempre morrer antes de ficar velho, como Daltrey e, como ele, não morri. Comentei posts (um substantivo) plenos de testosterona, a tentar parecer mais novo, não ser demasiado sensato, mas havia sempre alguma coisa a trair-me. E depois desisti. Não te encontrava lá.
Andei à tua procura tanto tempo e, de tempo quase esgotado, finalmente te encontrei: eras mesmo tu, minha juventude, estavas ali num momento de abandono, e o meu rosto fechado recordando. Contemplei-te, continuavas bela e forte, sem rugas no coração, os teus lábios sorriam muito e o brilho dos teus olhos dizia que ainda estavam todos vivos, não faltava ninguém, soube isso e não te revelei nada, perdoa, não vale a pena, um dias saberás. Voltaste a mim nesse instante, com a tua face perfeita. E logo te foste, ciente eu que decerto não te voltaria a ver. Voltaste para os verdadeiramente jovens, a quem pertences. Vieste e foste-te, e foi suficiente, pois levaste contigo um pedido que sei cumprirás: ires dizer aos que te prendem, meu radioso eu dom do passado, aos que dizem mal do ti que eu sou agora, aos que te têm em exclusivo e te impedem de me visitar, diz-lhes que os esperarei cá, neste lugar de naufrágio.
Post scriptum: Perdoem-me os leitores: estou cansado da crise, de ouvir falar e de escrever sobre a Grécia, o euro, os esquecimentos dos políticos, as tricas partidárias e as opiniões de tanta gente cuja opinião, na verdade, não me interessa nada; estou farto de histórias do Mal e seus avatares modernos, do sofrimento cinzento contado nos ecrãs, estou farto de quem diz estar farto e não faz nada contra isso, dos queixumes de quem não tem do que se queixar; mas estou sobretudo farto de não nos darmos ao trabalho de olhar para aqueles de entre nós que sofrem a dupla tragédia da velhice e do abandono, deixados ao desacaso de uma vida que sem tibiezas lhes diz não serem benquistos, já não serem benquistos; por actos, palavras e omissões fazemos-lhes saber todos os dias que não são daqui, e eles sem entenderem, a achar que sim, institucionalizados, explorados, roubados, ou simplesmente ignorados, continuam a achar que fazem parte de nós; ah ah – alguém ouve a voz deles? Eles, que são quem seremos se tivermos essa sorte, mas é só essa a sorte, a de um dia virmos a ser incómodos e caros, crianças grandes, pior, velhas, lamentadas, temos pena. Estou farto de não os vermos todos os dias nos lares em que os enfiamos para os esquecermos, ignorando que dess’arte estamos a preparar o nosso próprio esquecimento.
Estou farto de navegar este mar sem porto, de me saber condenado ao naufrágio, de viver uma morte procrastinada. Farto. Alguém quer ter a bondade de dizer aos novos que, no país de velhos em que nos vamos transformando, só estamos a ocupar o lugar que um dia será deles?
Professor do Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica