Cansada de Covid e (quase) certa de que a bazuca vai ser utilizada a favor de qualquer coisa que não o efectivo e mais que necessário apoio à retoma da economia portuguesa, resolvi espreitar, na esperança de estar errada, o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência. Só o nome diz quase tudo. Ou seja, nada. E essa começa por ser sempre a grande aposta dos políticos. Escreverem documentos com muitas páginas – este tem 143 – e numa linguagem que por mais que se leia, não diz nada.

Na realidade, saber escrever assim é um talento! Eu nunca fui capaz, nem nos tempos de escola, e por isso preocupava-me em saber a matéria para poder responder nos testes. Inventar ou alongar-me com a chamada “palha” nunca foi para mim.

Pois os nossos governantes utilizaram 143 páginas para explicar como é que pretendem gastar os 14 mil milhões de euros que nos tocaram da chamada bazuca. Aviso que é, como já perceberam, um documento de muito difícil leitura, mas que todos o devemos ler, mesmo que na diagonal. Tem descrições de programas como, por exemplo, a “Transformação da Paisagem dos Territórios de Floresta Vulneráveis”, que se vai traduzir na elaboração de 20 Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem (PRGP), na constituição de 90 Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) e no apoio a 800 aldeias com projetos de gestão de combustível! Já estou a imaginar a quantidade estudos, equipas e comissões para implementar uma coisa que, na realidade, ninguém percebe bem o que é ou como se tangibiliza com resultados visíveis.

Basicamente, as medidas estão divididas em três grandes grupos, como ilustro no quadro, que, para simplificação e facilidade de leitura, não segue a terminologia utilizada no documento.

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E o que podemos retirar de imediato do quadro? Que – porque será que não estou surpreendida? – a bazuca vai quase integralmente para o Estado! Qual retoma da economia, qual quê? Apoiar a sério a catrefada de actividades económicas que obrigou a estarem fechadas este tempo todo? Nada! Reduzir, a sério, mesmo que indirectamente, a carga fiscal para prevenir o desemprego? Nada! Reduzir de forma directa a carga fiscal para aumentar o rendimento disponível? Nada! Apoiar, a sério, a generalidade das empresas (e não as que são desde sempre alimentadas pelas “grandes obras públicas”) para evitar a falência? Nada!

Escolhi alguns exemplos de cada uma das três dimensões, como lhe chamam, para sabermos ao que vamos.

Na Transição Climática, 936 milhões de euros vão para o aumento das linhas de metro de Lisboa e Porto. Pergunto eu: a bazuca é para resgatar o país do afundanço provocado pela Covid, ou para pagar obras públicas previstas e que devem ser pensadas de forma estratégica, executadas de forma gradual e mantidas ao longo do tempo? Numa outra medida, falam da preocupação que têm com a desertificação do interior (conversa velha também…), mas 936 milhões vão para as redes de metro de Lisboa e Porto. É que nem as populações das zonas limítrofes de Lisboa – como o concelho de Cascais e Sintra – beneficiam. Estas duas zonas, que na prática têm apenas um transporte público – o comboio – que está mais do que saturado e que obriga milhares de pessoas a levar o carro para o centro da cidade, não têm qualquer solução à vista, há anos.  Mas lá está, a bazuca não tem esse propósito. Ou não deveria ter. Vamos gastar este dinheiro em tudo menos no objectivo que subjaz a si próprio.

Vão também ser gastos 620 milhões de euros na Eficiência Energética em Edifícios. Estando 300 milhões previstos para edifícios residenciais, sendo geridos pelo Fundo Ambiental, que reporta ao Ministério do Ambiente, onde, tipicamente, se utiliza grande parte dos recursos, mais uma vez a favor do Estado, sem passagem pelo Ministério das Finanças. Estou curiosa para ver as medidas em que vão ser aplicados estes 300 milhões. Pode, inclusive, valer a pena espreitar um Relatório de Actividades e Gestão. Eu espreitei o último disponível, de 2018 (vá, não comecem, ainda agora estamos em 2021) e é explícito que 27,38% da aplicação de fundos é para o Estado, 1,64% para países terceiros e organizações internacionais e 70,98% para o sector privado. Note-se, no entanto, que para o sector privado, no sentido em que o entendemos, são apenas 2,98%, já que os restantes 68% são para pagar o sobrecusto da produção em regime especial a partir de fontes de energia renovável.

Na Resiliência – palavra cujo significado desconhecem, a não ser aplicada aos Portugueses, que cada vez mais provam e comprovam a sua resiliência… resta saber até quando – temos a boa nova das “Infraestruturas”, ou seja, estradas! Com um país falido, vamos gastar 833 milhões em novas estradas. Bom, não são bem estradas, são, como eles chamam – preparem-se, porque este é um momento de humor – missing links! Entre outros nomes, claro, mas, espremido, tudo estradas!

Notem, que para a saúde vão 1.383 milhões de euros, contra os 833 das estradas ou os 936 das redes de metro. Isto, só para nos situarmos, quando andamos há um ano a ouvir que o “SNS não pode ficar saturado” e por isso temos de nos manter em casa! A perder empregos, a ficar física e mentalmente doentes e a piorar das doenças de que já padecíamos, algumas graves. Em 2020, realizaram-se menos 121 mil cirurgias e menos 1,2 milhões de consultas em hospitais. Como se o SNS não estivesse saturado há anos! Além de que, no que à Covid diz respeito, o SNS só esteve “saturado” porque não se utilizou a capacidade instalada no país – e não o foi, por motivações estritamente políticas e ideológicas.

Depois, temos também a designação já gasta do “apoio ao acesso à habitação”, onde estão previstos 1.633 milhões de euros. Isto até poderia ser uma boa notícia se não estivesse previsto, que destes 1633 milhões,  1.251 serão gastos pelas autarquias em “Programas de Apoio ao Acesso à Habitação”, ou seja, calculo que seja a multiplicação do que aconteceu em Lisboa, onde a Câmara de Medina comprou edifícios à Segurança Social, em zonas prime, por preços abaixo do mercado, para remodelação total e benefício de meia dúzia de pessoas. É exemplo disto, um prédio na Av. da República, comprado por um valor abaixo do mercado, para renda acessível, onde cada casa vai custar a módica quantia de 400 mil euros para beneficio de quatro famílias, cada uma com o seu T4 (aconselho a leitura deste artigo). Gastam-se 1,6 milhões de euros para ajudar quatro famílias? Querem ver que são família?

Por fim, temos o eixo da Transformação Digital! Nos últimos anos é só chavões, mas andarmos para a frente é que nada. Escusado será dizer, que a pandemia e o teletrabalho deram até um bom empurrão nesta matéria, mas claro que não podia faltar num enquadramento destes. Afinal, temos de justificar a utilização de 14 mil milhões!

E para este tema, que está dividido por várias rubricas, mas que todas juntas, com excepção de “Empresas” se poderiam incluir no item “Administração Pública Digital”, temos 1.304 milhões de euros para “modernizar” o Estado. O ponto deveria ser reduzir o Estado. Mas não, também há anos que se fala em modernizar o Estado sem que daí decorra qualquer redução do seu peso, quer enquanto sumidouro dos recursos financeiros normalmente designados por impostos, quer dos recursos humanos (sim, vai dar no mesmo…) cujo número curiosamente, teima em subir ao invés de descer. Em 2020, ano de pandemia, o número de funcionários públicos cresceu em 19.792 pessoas. Onde estão e a fazer o quê?

E neste ponto, eis senão quando, leio que como objectivo para fazer desaparecer estes 1.304 milhões de euros se inclui “…uma reforma que promova a Modernização e Simplificação da Gestão Financeira Pública”, ou seja, não mais que a afinação da máquina fiscal para aumentar as suas fontes de riqueza sem que lhe escape um cêntimo … dúvidas houvesse, pretende-se ainda obter um “maior conhecimento de informação patrimonial dos prédios rústicos”, que na redação anterior do PRR – e isto é um detalhe que elucida a forma como o próprio documento evoluiu – dizia, de forma explícita, “pretende-se ainda intervir no sistema de informação patrimonial com vista à implementação adequada de um sistema de tributação dos prédios rústicos”.  Tributação é sempre a palavra de ordem num Estado cada vez maior, cada vez mais gordo, cada vez mais pesado… para o nosso bolso.

Conclusão: o Estado igual a si próprio! Passou-vos pela cabeça que iam utilizar 14 mil milhões para ajudar à retoma da economia? Ajudar as empresas a crescer? Nesta fase, a nem sequer falir? Acreditou mesmo nisso? Que disparate!