Passaram 77 anos e alguns meses, entre o assassinato, em Maio de 1942, de Reynard Heydrich e a eliminação de Qassem Soleimani, em Janeiro de 2020. Heydrich, um fanático nazi, era chefe do Gabinete de Segurança do Reich, ou seja, a Gestapo, e também chefe do Protectorado da Boémia e Morávia, designação nazi para a Checoslováquia ocupada. Soleimani era comandante duma força militar muito especial, designada por Al-Quds, cujo objecto é a organização, apoio e participação nas milícias pró-iranianas que ocupam, com violência, incluindo actos terroristas contra civis, vários países do Médio Oriente, como a Síria, o Líbano ou o Iraque.
As semelhanças entre ambos os personagens são muitas, digamos mesmo, demasiadas. Ambos serviam ditaduras, ambos eram fanáticos implacáveis e ambos assumidamente antissemitas. A morte de ambos, também apresenta similitudes: Foram abatidos por determinação de governos de democracias liberais, morreram em países nos quais se encontravam ilegitimamente. Ambos se tornaram “mártires”, fosse do nazismo na altura, ou do islamismo, agora.
A diferença, pelo menos por agora, é que a qualidade de Heydrich como criminoso de guerra já era em 1942 um facto tão notório que não carecia de prova. No que se refere a Soleimani, a prova dessa qualidade não é assim tão notória, cumprindo aos EUA fazer um esclarecimento público mais completo sobre os actos deste personagem.
Heydrich, era considerado tão importante na hierarquia nazi que foi assassinado no âmbito de uma operação dos serviços secretos britânicos, com recurso a uma bomba especificamente fabricada para a sua eliminação. O engenheiro inglês Cecil Clarke, concebeu uma espécie de garrafa térmica optimizada com nitroglicerina, suficientemente poderosa para perfurar a blindagem, mas também suficientemente leve para ser atirada por mão humana. Era o melhor dispositivo da época, para um assassinato selectivo. Os executantes do atentado, os checos Gabcik e Kunis, aceitaram missão como um “acto de guerra” e o risco da sua própria morte como natural, o que aliás veio mesmo a suceder.
77 anos depois, voltamos a ter a “mão humana” na eliminação do alvo, mas agora, com os avanços da indústria bélica e de novo com a melhor tecnologia disponível, não a cinco metros, mas a muitos quilómetros de distância, através do comando de um drone.
O assassinato de Soleimani, pode ser avaliado a dois níveis que não se confundem. A primeira é a admissibilidade da eliminação selectiva de líderes militares por países que se encontram em conflito entre si (o caso Bin Laden é diferente, pois não era um militar de algum país). A segunda são as consequências que tal tipo de acto provoca, independentemente da sua admissibilidade ou “legitimidade”, em face das regras do direito internacional genericamente aceite.
Quanto ao primeiro aspecto, o da admissibilidade da eliminação selectiva, é um facto, que mesmo sem uma declaração de guerra formal, na realidade, os Estados Unidos e o Irão, encontram-se em conflito desde há quarenta anos, quando o novo regime de Teerão cercou e fez reféns os funcionários da embaixada dos Estados Unidos.
Não se afigura como surpresa, que os Estados Unidos considerem um alvo legitimo, o comandante, ainda que (só formalmente) indirecto, de forças militares como o Hezbollah, que já atacaram e mataram cidadãos e soldados norte americanos. Não há notícia que, à parte do regime iraniano, alguém, no Ocidente, no Leste ou na Ásia, tenha manifestado algum pesar pela morte de Soleimani. Tal como há 77 anos com Heydrich, em que apenas os nazis lamentaram, claro.
Outra questão, é o segundo nível de análise desta operação: a sua utilidade e as suas consequências.
Há 77 anos, os nazis declararam como um “dever sagrado”, vingarem a morte de Heydrich e “destruir com maior determinação ainda, os inimigos da pátria, implacavelmente e sem piedade”.
Estas expressões do passado, não deixam de ser muito semelhantes às usadas agora pelos líderes fundamentalistas que, para infelicidade do seu povo, governam o Irão. A proporcionalidade, não era uma virtude dos nazis, como é sabido. Por isso, ao invés de se vingarem assassinando um alvo semelhante dos aliados, a retaliação nazi foi a de dizimar toda a população da aldeia checa de Lidice. Umas centenas de homens, mulheres e crianças foram fuziladas. A vingança dos fundamentalistas do Irão, à falta de melhores meios para fazerem outra coisa, será previsivelmente a execução de atentados contra civis inocentes, através de algumas das células terroristas que controlam.
Não há certezas sobre se o objectivo da acção americana era mesmo eliminar Soleimani, ou se este terá sido uma vítima colateral, dum acto que se destinava a outros alvos, estando assim o defunto, no sítio errado à hora errada.
O certo é que o presidente Trump, assumiu pessoalmente a decisão de eliminar Soleimani, admitindo que era essa a intenção da acção militar.
E aqui, chegamos ao mais premente dilema que se coloca às sociedades democráticas. Nas nossas sociedades, vigora o primado da lei e a justiça só pode ser aplicada por quem tem esse direito conferido pela sociedade, isto é, os tribunais. Salvo em teatro de guerra (é o caso do assassinato de Heydrich) ou em legítima defesa, o cumprimento deste dever é a derradeira linha de defesa moral do Ocidente democrático perante as recorrentes barbaridades de outras latitudes. Saber se a eliminação de Soleimani pode ser considerado um “acto de guerra”, nos termos em que o direito internacional o reconhece, é a questão que está em aberto e, pelo menos na Europa onde vivemos, cada um é livre de ter a sua opinião e expressá-la publicamente.
Seja qual for a conclusão, tudo visto à luz da História, é um facto que o assassinato de Heydrich, esse sem dúvida um “acto de guerra”, em pouco ou nada influiu o curso da II Guerra e assim, ficará sempre a pergunta, se não teria sido melhor — poupando as vítimas da sabida vingança nazi — que um Heydrich derrotado tivesse sido levado ao Tribunal de Nuremberga, aí fosse julgado e seguramente enforcado.
Costuma dizer-se que quem ignora os erros do passado está condenado a repeti-los.