Há males que vêm por bem e um deles foram as intervenções do comentador Francisco Louçã sobre as grandes fomes na União Soviética. Ele fez-me lembrar, principalmente na segunda intervenção, os dirigentes nazis a recusarem-se a reconhecer ou a justificarem os crimes que cometeram. Com uma diferença, Louçã estava mais à vontade perante os ecrãs televisivos do que os carrascos do III Reich no Tribunal de Nuremberga.
Mas intervenções deste tipo apenas vêm confirmar a tese de que entre o nazismo e o comunismo não há qualquer tipo de diferença, a começar pelo discurso desumano e cínico.
Louçã, na sua segunda intervenção televisiva sobre o Holodomor (Grande Fome) na Ucrânia, tentou redimir-se muito suavemente ao ir além no “desmascaramento” das políticas criminosas de Estaline recordando que a fome abrangeu outras regiões da União Soviética, ou seja, para afastar a ideia de que ele jamais poderia ter rido e gozado com uma das páginas mais negras não só da Ucrânia, mas também da Rússia, Cáucaso, Bielorrússia e do Cazaquistão.
Depois voltou, muito indignado, à crítica daqueles que dizem que “os comunistas comem crianças”, embora a deputada municipal Aline Beuvink tivesse falado, e com razão, de uma das origens do aparecimento do mito de que os “comunistas comem crianças”.
Na maior parte das vezes, os mitos têm uma parte de verdade. E esta parte é que, durante as grandes fomes na URSS, provocadas pelas próprias autoridades, houve numerosos casos de canibalismo.
Aliás, algumas dessas fomes aconteceram quando ainda Vladimir Lenine e Lev Trotsky, líderes espirituais de Francisco Louçã, dirigiam a União Soviética, e Estaline era ainda um “rapaz de recados”. Em 1921, devido a uma forte seca, o governo bolchevique decidiu requisitar de forma tão violenta produtos agrícolas que os camponeses ficaram até sem sementes para plantar. Uma região habitada por mais de 90 milhões de habitantes, Cazaquistão, Urais, Região do Volga, Sul da Ucrânia e Crimeia, foi atingida por uma fortíssima onda de fome que causou a morte a cerca de 5 milhões de pessoas e milhares de casos de canibalismo.
Felizmente, os dirigentes soviéticos lembraram-se de pedir ajuda internacional, pois, se assim não fosse, o número de mortos poderia mais do que duplicar.
Em 1932-1933, as coisas voltam a repetir-se, mas, desta vez, as causas mais importantes foram o facto de os camponeses não quererem aderir aos kolkhozes e sovkhozes (unidades agrícolas de produção) e a continuação da exportação de cereais para conseguir dinheiro para a “industrialização”. Os resultados desta fome foram ainda mais trágicos. Estaline recusou-se a pedir ajuda internacional e o número de mortos ronda os 10 milhões.
Foram registados também numerosos casos de canibalismo e, para o caso de Francisco Louçã ainda não ter “dado conta” de onde veio o mito, fica apenas um fragmento dos relatos das autoridades comunistas: “Na aldeia Doljanskaya, da Região de Eysk, a cidadã Guerassimenko comeu o cadáver da sua irmã que morreu. Na aldeia Novo-Scherbinovskaya, a mulher do camponês rico Elissenko cortou o filho de três anos às postas e comeu-o. No cemitério foram encontrados até 30 caixões dos quais desapareceram os corpos…”.
Seria injusto para com o Doutor Francisco Louçã e para aquele seu ar cínico de sabichão não se falar da parte falsa do mito, que consiste em que, na realidade, os comunistas não comeram crianças.
Mas isto tem uma razão muito concreta e simples. Os seus camaradas bolcheviques não precisavam de recorrer ao canibalismo porque recebiam rações suficientes não só para se alimentarem a si mesmos e às suas famílias, mas também para terem forças para esmagar qualquer oposição ao poder comunista.
Foi precisamente a seguir ao Holodomor que terminou o processo de institucionalização do sistema de privilégios da nomenclatura soviética. Os camaradas de Francisco Louçã não podiam passar fome.
“O mais terrível é se vós, de repente, sentires pena e perderes a firmeza. Deveis aprender a comer mesmo se todos à volta estiverem a morrer de fome”, lê-se numa instrução secreta do Comité Central do Partido Comunista da Rússia (bolchevique).
Entretanto, no Outono de 1932, a loja da “Casa na Margem” (em Moscovo) fornecia mensalmente aos altos funcionários comunistas quatro quilos de carne, quatro de mortadela e fiambre, um quilo de caviar. Isto além deles e das suas famílias puderem frequentar cantinas com refeições gratuitas ou a baixos preços.
E fique descansado, professor Louçã, não é daí que vem o mito da “extrema-esquerda caviar”. Este mito vem da hipocrisia e das mentiras que políticos como você e outros espalham. No campo do discurso, acho que já foi mais longe do que André Ventura na insensatez.