A ouvir muito do que se ouve e a ler muito do que se lê, o pacato cidadão que consome televisão e jornais acaba por se convencer que Donald Trump apareceu do nada, por acção do diabo, investido de toda a malignidade que a imaginação contemporânea ousa conceber. Como se esta geração não fosse já em si eminentemente misteriosa, acresce que o advento do Mal surge na imediata sequência de um duradouro, e a seu modo eterno, reino do Bem, localmente conhecido pelo nome de Barack Obama. Quer dizer: quem ler e ouvir a grande maioria da opinião expressa (e das notícias que não se apresentam como opinião) não tem condições para perceber nada e não tem outra solução senão atribuir efectivamente a sucessão de Obama e Trump à inescrutável agência divina ou ao combate imemorial dos dois grandes princípios do Bem e do Mal. Dito de outra maneira: só pode aceder a uma interpretação mítica da realidade, sem qualquer poder explicativo. Esquizofrenicamente, amará os Estados Unidos, terá por eles uma incansável e muito proclamada amizade, e detestará Trump, que os Estados Unido democraticamente elegeram (aqui, como noutras coisas, a semelhança com o que se passou com George W. Bush é notória). Foi mais ou menos assim (Trump como a encarnação do Mal) que José Miguel Júdice, para dar um exemplo entre muitos, teologicamente explicou as coisas, muito bem disposto, terça passada na TVI.
Não pretendo aqui fazer a lista do que foi mau em Obama nem daquilo que em Trump responde, ou é reacção, ao que foi esse mau, nem sequer sublinhar como muitas políticas de Trump que, como neste jornal notaram José Manuel Fernandes (“Espanto e choque. O que fazer face a Trump”) e Rui Tato Lima (“Para lá do muro”), são prolongamento de políticas de anteriores administrações americanas, inclusive da de Obama. Pelo contrário: começo com algo que é da exclusiva responsabilidade de Trump e que manifesta uma péssima característica sua.
Estou, é claro, a falar da forma brutal como decretou a prometida proibição de entrada em solo americano dos cidadãos de sete países de maioria muçulmana por 120 dias e, por tempo indeterminado, de imigrantes sírios. Como se se tratasse de despedir da empresa um número de funcionários indesejável para o seu bom funcionamento e o lucro almejado e como se a história pessoal dos indivíduos e o seu sofrimento não contassem. Se quisesse fingir que era cínico diria, como se diz que Talleyrand disse (mas parece que não disse) acerca do assassinato do duque de Enghien por Napoleão: pior do que um crime, foi um erro. Mas não sou cínico nem quero parecer e não digo, até porque não tenho a certeza que, atendendo a várias sondagens entretanto realizadas, tenha sido um erro. Foi mesmo só, provavelmente, um crime de falta de consideração para com os indivíduos, algo que é realmente preocupante.
Essa brutalidade deve, no entanto, ser posta em contexto. Que eu saiba, Trump não anda a meter gente em campos de concentração nem a promover fuzilamentos generalizados. Não compro sequer a história do racismo (não a compro também em relação aos mexicanos) nem da suposta “islamofobia”. Além disso, convém notar duas coisas que Charles Moore, que igualmente não apreciou o gesto, sublinhou no Telegraph: todos os Estados têm o direito, e a obrigação, de controlarem as entradas no seu território; e abdicar dessa prerrogativa equivale a colocar o Estado em perigo.
O problema com Trump, como bem apontou José Manuel Fernandes no artigo que referi, é fazer o que os outros (Obama incluído) sempre fizeram, mas com indisfarçável orgulho, sem dissimulação alguma. E tal atitude presta-se a várias objecções. Há, como Kant notou há muito (e, antes dele, os moralistas franceses dos séculos XVII e XVIII), uma espécie de valor civilizacional da dissimulação que nos ajuda a progredir na direcção de uma melhor sociedade. Por vezes é útil para a melhoria da situação da humanidade que aparentemos virtudes que não possuímos. A aparência da virtude civiliza à sua maneira: a máscara acaba, por assim dizer, por se colar ao rosto. E o que Trump faz, ou fez, é exactamente o contrário.
Mas se há brutalidade em Trump, há-a também na opinião (incluindo, repito, a opinião que não se apresenta como tal mas como informação) que contra ele é expressa. Pelo menos sob duas formas: a da alucinação do Mal, precipitando nele todos os predicados concebíveis do demónio, e a da pressuposição da unanimidade nessa atribuição de características demoníacas ao personagem. A primeira coisa roça o patético (e o vulgarmente pateta). Não falo sequer da estúpida, ignorante e obscena comparação com Hitler, que lembra sempre que este também foi democraticamente eleito. Não vale a pena perder tempo com isso, apesar dos tempos presentes nos mostrarem mais uma vez como o respeito pela democracia é frágil em muita gente. Falo, por exemplo, dos delírios de psicologia selvagem tendo Trump por objecto. Eles não se contam, e comecei a fazer uma sua colecção particular, para um qualquer uso futuro. Por menos que se aprecie Trump, a lista dos adjectivos utilizados, muitas vezes no interior de um só artigo, desmistifica-se, a qualquer olhar atento, a si mesma. Quem anda sempre com a tal “pós-verdade” (um conceito oco) na boca encontraria aí um bom exemplo do que se quer dizer com tal expressão que substituiu outras melhores, mais justas e mais antigas. O próprio exagero, manifestando a furiosa passionalidade do juízo, mostra que não pode ser assim.
A outra forma de brutalidade representa a forma de totalitarismo mediático possível nos nossos dias. Todos, dizem jornais e televisões, mas mesmo todos, nada menos do que isso, estão contra Trump. O ridículo da afirmação e a sua facilíssima refutação não embaraçam. É como se a simpatia política, necessária para que as sociedades sobrevivam com um grau de coesão indispensável, se transformasse numa espécie de simpatia estética: reina o modelo de uma feroz unanimidade que a todos nos uniria, e não há cabeça vazia que a ela não se submeta. A reivindicação de um assentimento universal elimina a diversidade das opiniões: todos têm que pensar como nós, porque é a única maneira concebível de pensar. A substituição do pensamento político por um pensamento estético da sociedade pode oferecer o duvidoso benefício narcísico de nos vermos como a encarnação da virtude, mas garante infalivelmente duas coisas: o nada se perceber da realidade e a mais absoluta inoperância política.
Se quisermos manifestar a nossa virtude e a excelência dos nossos princípios (uma pessoa fica surpreendida coma quantidade de gente que aparentemente os tem ininterruptamente presentes ao espírito) há objectos de oposição bem mais urgentes do que Trump, até porque os americanos sabem tomar muito bem conta de si, como tomaram durante muito tempo conta de nós. Em França, por exemplo. Uma vitória de Marine Le Pen nas presidenciais francesas seria incalculavelmente mais nociva para nós do que a vitória de Trump nos Estados Unidos. A ideologia e a tradição são completamente diversas, e é disso que se deve ter medo. Gritar “populismo, populismo” como se a palavra abarcasse tudo e quisesse dizer sempre o mesmo não adianta nada. E esse medo tem mesmo uma razão de ser razoavelmente definida, até porque as trapalhadas em que se encontra François Fillon por causa dos supostos pagamentos chorudos à mulher, bem como a escolha socialista de Benoît Hamon, um esquerdista absurdo, facilitam, e muito, a vida à filha de Jean-Marie. Não se compare isto, por favor, com Trump ou o Brexit. A vitória de Marine Le Pen e da velhíssima tradição que, por mais camuflada que seja, ela traz consigo seria, de facto, o fim do mundo como nós, os europeus, o conhecemos.
Ou então, por razões mais comezinhas, Portugal. Costa e os seus, na ficção incongruente que construíram, estão a levar-nos disciplinadamente para o precipício. It’s a way of life. Os juros da dívida a dez anos, que para Marcelo parecem suaves prestações mensais, são um entre muitos outros sinais. Vai uma aposta? Mais depressa Trump fará coisas boas pelos Estados Unidos, e até pelo mundo, do que Costa o fará por Portugal. Mais depressa? Muito mais depressa.