Gostei do discurso de Trump ontem de tarde. De forma sóbria, e com uma gravidade que ganha uma eficácia suplementar pelo contraste com o seu estilo habitual, disse o que havia a dizer sobre o terrorismo teocrático do Irão e em particular sobre o facinoroso general Soleimani, esse grande humanista recentemente desaparecido, e terminou declarando o seu desejo que o povo do Irão venha um dia a gozar de um grande futuro, com prosperidade caseira e harmonia com os outros povos. Eu sei que a minha opinião favorável não é partilhada por Luís Costa Ribas, da SIC, que logo no fim do discurso apareceu, com o habitual pano de fundo da sua biblioteca em Boston, onde figura proeminentemente um livro cujo autor, a acreditar na lombada, foi escrito por Luís Costa Ribas, mas paciência… Luís Costa Ribas achou o discurso péssimo e não se pode dizer que isso nos deva surpreender, porque a sua contribuição praticamente quotidiana para o enriquecimento da percepção dos portugueses da realidade norte-americana consiste num discurso minimal-repetitivo de grande subtileza analítica sobre o motivo único “Trump é péssimo, é mais do que péssimo, é… é… é… pior do que mais que péssimo”. O que outros fazem espaçadamente — toda a gente precisa, uma vez ou outra, do seu bei de Tunes –, ele fá-lo à maneira de Philip Glass nos seus piores momentos (Glass tem bons momentos, graças a Deus). Enfim, cada um é como é, e os artigos exaltados que li esta semana sobre o fim do mundo que se avizinha por culpa exclusivíssima de Donald Trump foram escritos por gente que costuma sempre sobre a matéria escrever artigos exaltados, tal como os artigos reflectidos sobre o conflito entre os Estados Unidos e o Irão são da autoria de gente que tem por hábito escrever artigos reflectidos. É curioso, não é?

Mas voltando à biblioteca de Costa Ribas, aproveitando a intimidade que ele nos confere. Um livro que lá não vi foi o do historiador militar e classicista Victor Davis Hanson, publicado no ano passado e intitulado The Case for Trump (Basic Books).  É um livro bem interessante que, receio, ao contrário dos de Michael Wolff e Bob Woodward, não será traduzido em português. O livro lida com a presidência de Trump até 2018, procurando descobrir os padrões das decisões do presidente americano e medindo sucessos e insucessos, tanto de Trump como da oposição a Trump. Dá o retrato vivo de um mundo e alivia da vulgata político-jornalística que é a nossa dieta quotidiana. Por isso, não é inútil dar dele uma ideia geral em poucas linhas.

Hanson refere os notórios sucessos de Trump no domínio da economia e na baixa do desemprego, algo que é indiscutivelmente importante e representa uma nítida melhoria face à presidência de Obama, o que vai declaradamente contra as catastróficas previsões do universalmente admirado Paul Krugman, segundo o qual os mercados rapidamente entrariam em colapso mal Trump entrasse em acção. Em certos pontos, é claro, há continuidades mais ou menos manifestas com a presidência anterior (incluindo Hillary Clinton), como, por exemplo, no combate à imigração ilegal (de 11 a 22 milhões, segundo os mais diversos cálculos), embora a eficácia de Trump tenha sido consistentemente maior. Ou em matéria de intervenções externas. Já Obama diminuíra a sua frequência, e Trump, pouco disposto a combater guerras por outros, diminuiu-a ainda mais, embora tenha levado o ISIS a sério, contrariamente a Obama, que também não consta que se tenha importado muito com a invasão russa da Crimeia.

A diferença fundamental reside na atenção ao declínio e empobrecimento das zonas interiores dos Estados Unidos, constituídas por aqueles que a elite democrática e um bom número de republicanos haviam não apenas esquecido como desprezado, os célebres “deploráveis” da frase kamikaze de Hillary Clinton. Trump falou para esse vasto número de eleitores e genuinamente preocupou-se com eles. As guerras comerciais, a recalibração do comércio e o efectivo nacionalismo do Make America great again – o nacionalismo compensa a ausência de ideologia – entroncam directamente nessa preocupação. As questões marginais (casas de banho transgénero, por exemplo) merecem-lhe zero de atenção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E há a linguagem, é claro. Victor Davis Hanson diz óptimas coisas acerca da retórica de Trump. Um ponto central é o seu carácter reactivo. Ao contrário de George W. Bush, que sistematicamente se recusava a responder aos inúmeros insultos que lhe dirigiam (lembram-se?), Trump responde imediatamente. A agressividade do que diz é, por regra, dirigida contra indivíduos que previamente o agrediram, a sua função é retaliatória. Dir-se-á — Hanson coloca obviamente a questão — que a dignidade presidencial é assim posta em questão. Mas, responde Hanson, o uso e abuso dos eufemismos pode ser mais obsceno do que a grosseira obscenidade, além de que, real ou imaginária, a autenticidade é mais apelativa do que a hipocrisia.

A provocação e uma forma de desarmar o adversário. Por exemplo, anunciar que vai construir um “belo muro”, a beautiful wall,  ou escrever, acerca das contínuas mudanças no seu círculo, “ainda tenho algumas pessoas que quero mudar (sempre em busca da perfeição)”, ou ainda, a propósito de si mesmo, que se qualifica “não como esperto, mas como um génio … e, além disso, um génio muito estável”, tudo isso põe o adversário a hesitar se está a falar a sério ou não, quando não a delirar pura e simplesmente, quando se procura interpretar cabalisticamente óbvios lapsos em tweets (como quando, querendo escrever coverage, Trump escreveu covfefe). Já agora, por pura curiosidade, porque é que ninguém ridicularizou Obama por ele ter dito que o Havai, onde nasceu, se encontrava na Ásia e que os austríacos falam uma língua chamada “austríaco”? Pessoalmente, eu não teria ridicularizado, essas coisas não têm importância alguma, mas também não creio que os lapsos de Trump tenham grande significado.

E o adversário? O adversário, o Partido Democrático, começou a evoluir, já desde o segundo mandato de Obama, em direcção a um neo-socialismo e a uma fixação em políticas identitárias e num ambientalismo radical que beneficiam Trump. Como só o pode beneficiar o palpável desejo de morte exibido, entre outros, por actores de Hollywood, cujas opiniões políticas obviamente Trump, com grande sageza, não leva a sério. Restam o “estado profundo”, o deep state, e os media. O deep state, a burocracia de Washington, que proclama abertamente o seu estatuto de “resistência” a Trump, pode, é claro, fazer estragos, e faz tudo para os fazer (os livros de Wolff e Woodward fazem eco à “resistência”). Os media, em contrapartida, tornaram-se a tal ponto dependentes de Trump (e a CNN está longe de ser caso único, como se sabe) que, dada a sua obsessão propriamente neurótica com ele, produzem, como efeito perverso, um movimento favorável a Trump.

Hanson vê em Trump um personagem finalmente trágico, destinado a ser descartado quando tiver levado a cabo um certo número de mudanças necessárias à sociedade americana. Como em relação a muitas coisas que Hanson diz no livro, ignoro se será verdadeiramente assim. Mas, uma vez não são vezes, permito-me referir um artigo que aqui publiquei não muito depois de Trump ser eleito e que motivou mais ataques, quer em conversa directa, quer por mail, do que qualquer coisa que eu tenha escrito. Dizia eu que mais depressa Trump faria algo pelo seu país, e até talvez pelo mundo, do que António Costa por Portugal. Não vejo razão alguma para mudar de opinião.