1 Surpreendentemente, ou talvez não, várias vozes no Ocidente continuam a dizer que a culpa da invasão russa da Ucrânia foi do Ocidente. Surpreendentemente, ou talvez não, essas vozes já não partem só da extrema-esquerda (aliás em declínio bem vindo, ainda que tardio). Surpreendentemente, ou talvez não, parece ser agora em sectores anti-liberais do populismo de direita que têm crescido nos últimos anos as vozes de conciliação — por vezes mesmo de elogio aberto — ao ditador Putin. Isto está a acontecer pelo menos em França, em Itália, no Brasil e até nos EUA, não sei se também em Portugal.

Uns argumentam que o Ocidente ameaçou a Rússia com a entrada da Ucrânia na NATO; outros dizem que a União Europeia e o Ocidente vêm ameaçando a Rússia com a “exportação da ditadura do politicamente correcto”; outros ainda, em delírio total, chegam ao ponto de dizer que a Rússia de Putin é hoje a derradeira defensora da cultura europeia “não-politicamente correcta”. E muitos ainda ganharam o hábito de dizer que o Ocidente já não é verdadeiramente democrático e que se tornou uma “ditadura das elites oligárquicas e politicamente correctas” — um “argumento”, aliás, que era comum aos comunistas e aos nacionais-socialistas nazis dos anos 1920-40.

2 Os factos mostram sem margem para dúvida que a responsabilidade — e a culpa — da invasão da Ucrânia cabe inteiramente ao banditismo político-militar do czar soviético Vladimir Putin. Os factos têm sido exemplarmente divulgados pela comunicação social nacional e internacional e têm sido livre e civilizadamente escrutinados. Não preciso de voltar a eles.

O ponto que aqui me parece crucial é a emergência de vozes significativas no interior das democracias liberais dizendo que a democracia liberal já não é democrática — teria passado a ser uma ditadura das elites oligárquicas Por esse motivo, alegam, pode ser justificável e até aconselhável apoiar a ditadura russa (por enquanto, que eu saiba, ainda não a ditadura chinesa).

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É a este propósito que gostaria de evocar Winston Churchill.

3 Quando as democracias ocidentais estavam dilaceradas por uma aliança nazi-comuinsta contra as chamadas ‘democracias parlamentares capitalistas’ —. que conduziu ao infame Pacto Germano-Sovético, (Ribbentrop-Molotov) de 23 de Agosto de 1939 que acordou a dupla invasão da Polónia — Churchill avisou antes disso:

Não temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível — não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição liberal, no Governo democrático e parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?” (Discurso em Paris, 24 de Setembro de 1938).

Dois anos antes, também em Paris, Churchill denunciara igualmente a coligação entre as tiranias nazi e bolchevique:

Entre as doutrinas do camarada Trotsky e as do Dr. Goebels, deve haver espaço para cada um de nós, e mais umas quantas pessoas, cultivarmos as nossas próprias opiniões. […] Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil?

4 Por outras palavras, Winston Churchill sabia com clareza distinguir as ditaduras nazi e comunista das democracias liberais. Nunca as confundiu e nunca aceitou que as ditaduras fossem justificadas pelas imperfeições da democracia liberal — “o pior regime, com excepção de todos os outros”. Foi por isso que soube liderar a condenação e a resistência contra o bolchevismo e o nazismo desde a primeira hora.

Churchill certamente acreditava que os povos de língua inglesa tinham um apego particularmente forte à tradição da liberdade. Foi também por isso que Churchill assinou com Roosevelt a Carta Atântica, logo em Agosto de 1941. E foi por isso que foi nos EUA, a 5 de Março de 1946, que ele lançou a primeira denúncia pública da “Cortina de Ferro” e retomou o apelo para a constituição da NATO.

Mas Churchill também sabia que a tradição da liberdade pertencia à Europa no seu conjunto e não apenas ao Reino Unido ou mesmo aos povos de língua inglesa. No final da guerra, opôs-se aos que queriam punir a Alemanha e os seus aliados e apelou abertamente a alguma forma de Clube Europeu. A 5 de Junho de 1946, três meses depois do discurso de denúncia da Cortina de Ferro, disse Churchill em pleno Parlamento britânico:

Devemos proclamar sem medo: Deixemos a Alemanha viver. Deixemos a Áustria e a Hungria serem livres. Deixemos a Itália retomar o seu lugar no sistema europeu. Deixemos a Europa levantar-se de novo em glória e pela sua força e unidade garantir a paz no mundo.

A 19 de Setembro desse mesmo ano, no célebre discurso na Universidade de Zurique (em cujo 50º aniversario tive o prazer e privilégio de participar) Churchill foi ainda mais longe e argumentou que a reconstrução da Europa deveria ser fundada na reconciliação entre a França e a Alemanha: “Não poderá haver renascimento da Europa sem uma França espiritualmente grande e uma Alemanha espiritualmente grande.

5 Em suma, creio que é nosso dever defender a Ucrânia e o Mundo Livre. Como disse Churchill: “Nunca nos renderemos!”.