1 No dia 4 de Fevereiro de 2019, o Presidente da República visitou o Bairro da Jamaica, no Seixal, onde, dias antes, tinham ocorrido violentos confrontos com a polícia. O local evidenciava a falta de condições de segurança e de habitabilidade. Nessa altura, o Presidente foi fotografado, entre outros, com sete membros da família Coxi, ali residentes.

2 Na campanha para as eleições presidenciais, no debate de 24 de Janeiro de 2021 em que intervieram Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura, este exibiu aquela fotografia da família Coxi, dizendo: «Esta fotografia mostra tudo o que a minha direita não é. Nesta fotografia, o candidato Marcelo Rebelo de Sousa juntou-se com bandidos, um deles é um bandido verdadeiramente, que tinham atacado uma esquadra policial e quando o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica, foi visitar os bandidos, não foi visitar as polícias.»

3 Em resposta, Rebelo de Sousa disse: «Ora bom, a minha direita é uma direita social. É uma direita que não distingue os Portugueses entre os bons e os bandidos (…) Isso é o contrário da inclusão, isso é o contrário do que deve ser um candidato presidencial. E eu fui lá, e fui lá como fui a muitos outros bairros, para mostrar que o Presidente da República não tem medo de ir a qualquer dos bairros, vai tão depressa a bairros de ciganos, como vai de africanos, como vai daqueles que não o são (…) Vai, e não discrimina (…) Não é um caso de polícia, a Jamaica é um caso social. É um caso de injustiça social.»

4 O discurso de André Ventura representa a instrumentalização de uma família e de uma comunidade para servir a propagação de ideias racistas, discriminatórias e ofensivas da personalidade não só dos retratados na imagem, como daqueles que fazem parte do seu grupo social. É uma narrativa contra a dignidade da pessoa humana. Felizmente, Marcelo Rebelo de Sousa – num dos melhores momentos da sua campanha – deu-lhe a resposta certa, no tom adequado, ou seja, utilizou a linguagem do respeito pelo outro, da inclusão e da democracia.

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5 Mas a questão não tem apenas a ver com a intervenção política, há uma outra vertente que diz respeito à tutela da personalidade das pessoas retratadas, as quais foram expostas ao opróbrio de serem apresentadas publicamente com uma imagem de delinquência. Com a agravante da generalidade dos retratados não terem quaisquer antecedentes criminais, sendo um deles menor. Aliás, só um tinha sofrido condenação criminal por crimes de menor relevância (desobediência, tráfico de droga de menor gravidade e condução sob a influência do álcool), cujas penas cumprira.

6 A exposição pública da fotografia no contexto em que o foi traduziu uma ofensa gratuita, desnecessária e abusiva à identidade daquele conjunto de pessoas, uma das quais era uma criança. Parece-me assim incontroverso que ocorreu um grave desrespeito dos valores inerentes à personalidade, à boa reputação e à imagem dos retratados. Saúdo por isso a iniciativa processual da família Coxi e da sua advogada, bem como os termos, que julgo acertados, da sentença proferida em 1.ª instância, em 21 de Maio deste ano, e mais recentemente da Relação de Lisboa, por acórdão de 14 de Setembro, naquilo que teve a ver com uma adequada ponderação dos interesses em causa e uma avaliação justa da conduta ilícita de André Ventura e do partido Chega, que replicou o discurso do líder na sua conta oficial do Twitter.

7 Perante a ilicitude das condutas, julgo que está bem justificada a condenação de André Ventura e do Chega a absterem-se de proferir ou divulgar, no futuro, declarações ou publicações, escritas ou orais, ofensivas do bom nome da família Coxi, com uma sanção pecuniária compulsória por cada infracção, bem como na obrigação de publicar, a expensas suas, nos mesmos meios de comunicação social onde as declarações ofensivas foram originalmente divulgadas, a sentença que os condenou. Por outro lado, está em aberto que, numa outra acção em que se apurem os danos sofridos (o que não estava em causa na que foi julgada), a família Coxi venha a reclamar uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

8 Porém, a sentença dá um passo além do que devia quando condena André Ventura e o Chega a emitirem uma declaração, escrita ou oral, de retractação pública, a ser publicada nos mesmos meios de comunicação social onde as suas declarações foram originalmente divulgadas, com a sanção pecuniária compulsória de 500 euros por cada dia de atraso no seu cumprimento após o prazo que lhes é concedido para o efeito. Neste particular, deve ficar registado que o acórdão da Relação não comunga desse erro, uma vez que os recorrentes não suscitaram devidamente a legalidade desse segmento da condenação, razão pela qual tal tema nem sequer foi abordado pela Relação de Lisboa. No recurso, como em declarações públicas que prestou, André Ventura centra-se no que julga ser o seu direito a dizer o que disse, desvalorizando a natureza da sanção a que foi sujeito, o que talvez se compreenda considerando que é adepto da prisão perpétua e da castração química.

9 Em nome do Estado de Direito, sinto o dever de vir dizer publicamente que uma sanção desse cariz não é admissível numa democracia. Não se discute que a condenação de uma pessoa – penal ou civil – pode e deve ter em conta a conduta do infractor após a data do ilícito, o que é susceptível de modelar o conteúdo da sanção. Basta ter presente que o arrependimento é factor atendível, designadamente para o efeito da suspensão da pena de prisão. Diferente é, contudo, o que acontece neste caso, em que se pretende impor ao infractor um acto de contrição pública, sob a ameaça de um castigo pecuniário diário – e sem limite de tempo – caso não o faça. Tão inusitada, desnecessária e desproporcionada sanção abre um precedente que, a ser perfilhado, importaria para o nosso sistema o gérmen de um totalitarismo intolerável. Ninguém pode ser coagido a fazer declarações de arrependimento sob pena de ter de pagar 500 euros ao dia. O que acabo de dizer parece-me uma evidência, mas a verdade é que a sanção em causa foi divulgada publicamente e não suscitou qualquer reacção. Nem à direita, nem à esquerda, que aplaudiram sem restrições a decisão judicial.

10 Não me é agradável ter de tomar a palavra para defender André Ventura ou o Chega. Mas não quero viver numa sociedade maniqueísta, em que os dissidentes, por piores que sejam, para além de serem punidos pelo que fizeram, têm ainda de se humilhar – perante a cominação de uma espécie de pena perpétua à razão de 500 euros por dia – através da adopção de condutas que repudiam. Não aceito que num Estado de Direito quem quer que seja possa ser condenado nesses termos. Há valores e princípios por que nos devemos bater. Sempre.