1 Na crise em que estamos, a prioridade é naturalmente a da saúde dos portugueses. De todos, sem excepções. Vivam no litoral ou no interior, nas cidades ou nos campos, em território nacional ou no estrangeiro. Seja qual for a sua profissão. Sejam novos ou velhos. A seguir, vem a economia que nos dá o alimento, o vestuário, o transporte, a energia e tudo o mais de que precisamos para manter um padrão mínimo de qualidade de vida. Mas há um terceiro pilar que não pode ser esquecido: o da justiça, sem a qual não há sociedade que possa subsistir com dignidade e em paz. Falo da justiça propriamente dita, mas também da segurança que é sua prima.

2 O estado de emergência que o Presidente da República decretou, com a aprovação da Assembleia da República, e o Governo regulou, era e é imprescindível. Não estou de acordo com as críticas que se fizeram à sua precocidade, desnecessidade ou alegada natureza preventiva. A declaração de estado de emergência existe precisamente para situações como aquela que atravessamos. Se não, quando é que utilizaríamos essa medida de excepção? A declaração não teve um carácter preventivo, foi ditada pelas condições em que actualmente o país vive e em que seguramente continuará a viver, pelo menos durante as próximas semanas, quiçá meses. A sua declaração condiciona o funcionamento do Estado de Direito, mas é também a sua salvaguarda. Para que não se cometam abusos nem atropelos, para que cada um saiba os seus direitos e os seus deveres. O estado de emergência foi decretado ao abrigo dos princípios e das regras do Estado de Direito.

3 A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, respondeu bem à emergência que se vive no mundo da justiça, designadamente quando suspendeu prazos e diligências e estabeleceu regras para os actos urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais. Todavia, isso não deve fazer esquecer a necessidade da adopção de um verdadeiro plano para a justiça enquanto durar o estado de emergência. Bem sei que não se podem fazer grandes planos a longo prazo e provavelmente nem mesmo a médio prazo. Contudo, de acordo com os dados disponíveis, é já possível antever que o actual quadro se manterá pelo menos até Junho, ou seja, praticamente até ao período das chamadas férias judiciais de Verão.

4 Neste contexto, é necessário estabelecer um plano para este período que vai até Junho, sem prejuízo das adaptações pontuais que a evolução da situação justificar. É nesse âmbito que eu me atrevo a formular algumas sugestões, que não são ditadas por uma competência especial que não tenho, mas pelo desejo de contribuir para uma solução, considerando 40 anos de experiência profissional nas comarcas do país e em quase todas as áreas da acção da justiça.

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5 A primeira preocupação tem de ser as prisões. Os presos estão à guarda do Estado e devem por isso constituir uma prioridade absoluta. São imperiosas algumas medidas muito simples: i) efectuar testes à presença do vírus a toda a população prisional, bem como aos guardas prisionais; ii) facilitar os contactos telefónicos entre os reclusos e as suas famílias, permitindo a utilização de telemóveis no interior dos estabelecimentos prisionais; iii) aceitar que os reclusos continuem a poder receber alimentos do exterior facultados pelas suas famílias (respeitadas as condições de higiene e saúde pública); iv) excepcionando as situações de crimes particularmente graves ou de reclusos especialmente perigosos, permitir a possibilidade do cumprimento das penas no domicílio (com vigilância electrónica) dos reclusos mais vulneráveis, designadamente os que tenham mais de 70 anos e os que padeçam de doenças crónicas; v) antecipar a concessão de liberdade condicional, uma vez cumpridos 2/3 da pena (ou mesmo metade da pena para os crimes menos graves), não havendo pendências de processos disciplinares ou outros eventos que o desaconselhem. Em contrapartida, embora isso seja duro e quiçá injusto, devem suspender-se as saídas precárias para evitar perigo de contágio aquando do regresso à prisão.

Por outro lado, em matéria de prisão preventiva, deve definir-se um grau maior de exigência para o seu decretamento, reservando-a para os crimes mais graves e para as situações mais lesivas dos perigos de fuga, perturbação do inquérito ou continuação da actividade criminosa.

Finalmente, deve suspender-se o início da execução de penas de prisão efectiva já decretadas por decisões transitadas em julgado, a não ser para os crimes mais graves ou em face de outras circunstâncias em que, para salvaguarda das vítimas ou da segurança das populações, isso seja desaconselhável.

6 Relativamente à vida dos tribunais e aos processos pendentes, deve manter-se a actual suspensão dos prazos judiciais e administrativos, a não ser para processos urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais e ainda noutras situações em que o protelamento da acção da justiça possa pôr em risco interesses atendíveis pela sua relevância económica ou social. Admitindo-se que tal critério possa eventualmente ser difícil de aferir, gerando incerteza, deve prever-se a possibilidade de um recurso urgente, a tramitar em prazo curto, para uma formação especial de juízes do tribunal de recurso.

Relativamente a actos processuais, só devem ser praticados aqueles que tenham a ver com os ditos processos urgentes ou noutras situações bem definidas a regular por lei (admitindo que estas possam vir a ser gradualmente aumentadas). Por exemplo, entendo que, relativamente a um julgamento em que já tenha sido produzida toda a prova, se possam realizar por videoconferência as alegações finais. Idem para as audiências públicas em tribunais superiores. Idem para a realização de debates instrutórios (sim, estou a pensar na Operação Marquês e no processo de Tancos, cujos debates instrutórios foram bem desmarcados, mas que não se justifica que se mantenham adiados para além de determinada data). No mais, deve manter-se o regime das férias judiciais. Contudo, a não ser que da parte dos magistrados em causa exista uma situação atendível (designadamente, a assistência a filhos ou a outras pessoas que careçam de especial protecção) podem e devem continuar a ser proferidas sentenças e outras decisões em processos que estejam pendentes de tais actos.

7 Quaisquer actos de registo devem poder fazer-se por via informática (como hoje, em geral, já acontece), sem prejuízo de se considerarem suspensos os prazos para os requerer ou para reclamar de quaisquer decisões que sejam proferidas nesse âmbito, a não ser quando estejam em causa direitos fundamentais ou outros interesses económicos ou sociais especialmente atendíveis. Deve prever-se a possibilidade dos actos notariais poderem ser feitos com recurso ao skype ou outro meio equivalente, cabendo ao notário assegurar a fidedignidade dos meios utilizados.

8 Uma nota final para a situação de dificuldade económica em que estão muitos advogados. Não há em Portugal só grandes escritórios, que funcionam como verdadeiras empresas. A grande maioria dos advogados ainda trabalha numa base individual e liberal. Também são trabalhadores independentes a merecer, como os restantes, uma adequada e mínima protecção social. Não há justiça sem advogados.

9 São sugestões que deixo ao correr da pena, esperando que o Governo, os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, a Procuradoria Geral da República, a Ordem dos Advogados, dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e dos Notários estejam a trabalhar no sentido de cooperarem na adopção de soluções rápidas, expeditas, simples e proporcionadas. Sem esquecer que se deve criar um grupo restrito e operacional a preparar o pior cenário se a crise não estiver debelada até ao Verão. Esperamos que tal não chegue a ocorrer, mas temos de estar preparados para o enfrentar se for caso disso.