1. Ihor Homeniuk não devia ter morrido, muito menos da forma como morreu. A sua morte foi fruto das deploráveis condições em que os cidadãos estrangeiros são colocados nos centros de instalação temporária. Há muito que são noticiados abusos cometidos nessa “terra de ninguém”. É devida não só uma palavra de indignação e protesto por aquilo que aconteceu com Ihor Homeniuk, como outra de solidariedade e pesar à sua família.

2. Desde Março do ano passado, três inspectores do SEF são apresentados aos portugueses como responsáveis por terem torturado até à morte Ihor Homeniuk. Poucas vezes vi expresso nos meios de comunicação social portugueses um juízo tão generalizado, e dado como incontroverso, acerca da responsabilidade criminal de alguém. Em uníssono, jornalistas, comentadores e políticos deram como provado aquilo que não conheciam. Não duvido que o fizeram com a boa-fé de acreditarem que assim foi, mas isso não altera o facto de estes três homens já terem sido inapelavelmente condenados pela opinião pública.

3. Não faço parte daqueles que acham que só o trânsito em julgado de uma sentença condenatória pode permitir que a comunidade discuta e valore os actos dos cidadãos. Uma coisa é a presunção de inocência para o efeito do processo penal, outra é o direito de pronúncia sobre quaisquer factos relevantes que a liberdade de expressão e o interesse público impõem que seja assegurado.

4. A questão não está em que se discuta o caso da morte deste ucraniano sem que o julgamento se tenha sequer iniciado. O problema está em como se discute. Começa pelas informações que vão saindo. Em vez do Ministério Público ou das polícias irem “soprando” por fonte anónima aquilo que querem veicular, seria preferível que, através de comunicados esclarecedores, as autoridades transmitissem aquilo que deve ser divulgado. Depois, com o processo já público, faltou o escrutínio à versão da acusação, quando os autos revelam outros cenários igualmente plausíveis.

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5. Patrocino um dos três inspectores visados. Não escrevo para demonstrar que eles não cometeram o crime de homicídio qualificado de que estão acusados. Isso é o que a defesa procurará fazer durante o julgamento. Aquilo que me leva ao dever de não estar calado é a necessidade de uma imperiosa chamada de atenção para as questões que estão em aberto neste julgamento e sobre as quais é justo que se peça às pessoas que não formulem juízos antecipados. Obtive autorização da Ordem dos Advogados para esse fim.

6. A saga de Ihor Homeniuk começou no dia 10 de Março de 2020 quando, cerca das 11 horas, desembarcou em Lisboa proveniente de Istambul. Às 19:30 horas foi-lhe recusada a entrada em território nacional. Pouco depois, o cidadão ucraniano terá tido uma crise convulsiva, com queda e dificuldades respiratórias, o que levou ao seu internamento hospitalar. Na manhã do dia 11 teve alta, tendo sido encaminhado para um voo com destino a Istambul, que recusou, após o que foi conduzido ao centro de instalação temporária, onde revelou grande agitação e agressividade em relação a inspectores, vigilantes e outros intervenientes, o que se prolongou durante esse dia e madrugada seguinte, período durante o qual o pessoal de saúde foi chamado para lhe dar assistência. Os autos demonstram à saciedade o descontrolo em que Ihor Homeniuk se encontrava, provocando desacatos e confrontos físicos, o que levou a que fosse submetido a sucessivos actos de manietação ou tentativa de manietação. Durante essa madrugada, houve um corrupio de inspectores, vigilantes e pessoal de saúde na sala onde Homeniuk se encontrava, a qual, aliás, para protecção da sua integridade física, foi despojada do seu mobiliário.

7. Pouco depois das 8 horas do dia 12 de Março, os três inspectores receberam ordem para se deslocarem ao local onde Homeniuk estava detido, a fim de procederem à sua algemagem e imobilização, considerando o quadro caótico já descrito. Os inspectores chegaram ao local às 8:32 horas e aí permaneceram até às 8:55 horas. Encontraram Homeniuk atado com adesivos e a tentar libertar-se, situação que logo consideraram ser inaceitável e contrária às boas práticas. A sua versão é a de que o libertaram desses adesivos, o algemaram e prenderam com ligaduras médicas, deixando-o em posição de decúbito lateral. Dizem que usaram apenas a força necessária para essa intervenção, não o tendo pontapeado, socado ou agredido. Em seguida, abandonaram o local, deixando a chave das algemas aos vigilantes da Prestibel, com indicação de que Homeniuk devia ser desalgemado quando estivesse mais calmo. Comunicaram a ocorrência à chefia e regressaram aos seus postos de trabalho. Depois da sua saída, várias pessoas, designadamente vigilantes, continuaram a aceder ao local.

8. Perante este cenário, o Ministério Público entende que teriam sido agressões perpetradas pelos três inspectores, no curto período em que estiveram com Homeniuk, que lhe causaram a morte por asfixia mecânica, o que o relatório da autópsia confirmaria. Marginalizemos as deficiências da autópsia, que são várias e graves, e a circunstância inusitada de ter sido imediatamente autorizada a cremação do corpo, inviabilizando uma revisão adequada do juízo efectuado. Admitamos, mesmo assim, como plausível, que a asfixia de Homeniuk foi provocada por lesões traumáticas infligidas no seu tórax.

9. Três questões fundamentais:

  • As lesões traumáticas que terão levado à asfixia e morte do cidadão ucraniano terão sido fruto de agressões que inspectores do SEF ou vigilantes lhe teriam infligido? É possível que sim, mas tais lesões também podem ter sido provocadas por outros factos acidentais ou, pelo menos, não intencionais.
  • Se Homeniuk foi socado e pontapeado, os agressores foram os inspectores que vão ser julgados? Eles negam peremptoriamente que isso tenha acontecido e os dados do processo admitem outras possibilidades como plausíveis.
  • Houve intenção de provocar a Homeniuk tais lesões corporais, conformando-se os seus autores com a eventualidade de lhe causarem dificuldades respiratórias e a morte? Este é um caso em que o tema do dolo coloca especiais dúvidas e dificuldades.

10. Num Estado de Direito, é muito importante que a culpa não morra solteira e que se apurem as responsabilidades do que aconteceu a Ihor Homeniuk. Mas é também fundamental que não se escolham bodes expiatórios. E que, num quadro factual tão controverso, se aguarde o resultado de um processo equitativo para ver esclarecido aquilo que efectivamente aconteceu.