Primeiro, os factos que ficaram provados: em Paredes, uma mulher foi brutalmente agarrada pelo pescoço pelo seu companheiro, que a arrastou à força em plena rua. O homem, de 37 anos, obrigou-a a entrar num carro e o episódio da agressão foi testemunhado por uma patrulha da GNR que ia a passar e assistiu a tudo.
Tudo, neste caso, equivale a dizer que os agentes da GNR foram testemunhas oculares e viram a mulher a ser agarrada, a ser levantada do chão e, depois, a ser arrastada pelo pescoço até ao interior de um carro. Os agentes intervieram, claro, e por isso também foram ouvidos durante o julgamento do agressor.
No tribunal de Paredes, todos estes factos foram dados como provados, mas a juíza Isabel Pereira Neto “considerou não haver crueldade suficiente para o ato ser considerado violência doméstica” e decidiu absolver o velhaco.
Não precisamos de ser juízes para perceber que um homem que aperta o pescoço à sua mulher e a arrasta à força para dentro de um carro é um grande malvado, um verdadeiro criminoso e um autêntico facínora. Também não precisamos de ser médicos para entender que arrastar alguém pelo pescoço causa muita dor física e provoca uma pavorosa sensação de asfixia. Tão pouco há necessidade de termos uma especialidade em psicologia ou psiquiatria para avaliar o impacto da extensão da humilhação pública e compreender as marcas profundas que o sofrimento moral e emocional deixa em quem é vítima de maus tratos.
Talvez a juíza Isabel já tenha sido arrastada pelo pescoço por muito amor e com uma crueldade terna que só ela parece conhecer, mas tirando a juíza Isabel, não há mais ninguém à face da terra que não fique aterrorizado só com a ideia de um dia poder ser agarrado pelo pescoço, arrastado pela rua e enfiado à força num carro.
Quando a juíza Isabel, na posse de todas as provas e ciente de todos os factos, decide absolver o homem que maltrata na rua a mulher com quem vive em casa, tem que saber que está a absolver um agressor e a condenar duplamente uma vítima, que além de já ser maltratada pelo companheiro, também passou a ser maltratada pela Justiça.
Aliás, a partir de agora e graças à douta juíza de Paredes, todas as vítimas, sejam homens ou mulheres, velhos ou crianças, ficam ainda mais vulneráveis e expostos à violência física, pois basta o argumento da “crueldade insuficiente” para devolver a casa os agressores e, desta forma, perpetuar o sofrimento das vítimas.
Já os agressores, esses ficam livres para manter o registo das agressões dentro e fora de casa, com ou sem testemunhas qualificadas, pois todos os abusos e perversidades lhes serão consentidas desde que não passem os limites da dita crueldade soft.
Mandar em liberdade, declarando inocente um homem violento e capaz de agredir na rua, à luz do dia, dando como argumento de absolvição o facto de ele “não ter sido suficientemente cruel”, é uma aberração total.
Todos sabemos que os excessos da violência doméstica ficam quase sempre escondidos porque tudo se passa dentro de portas, entre as paredes de casa, e é extraordinariamente difícil apanhar o agressor em flagrante delito. Neste caso nem sequer foi preciso fazer uma denúncia, porque os maus tratos e a violência aconteceram fora de casa e foram testemunhados por uma patrulha da GNR, mas aos olhos da juíza era preciso sangue ou, quem sabe, um indício claro de morte iminente.
Arrepia pensar no que seria “suficientemente cruel” aos olhos desta juíza. E é impossível não nos pormos na pele da mulher agredida, que facilmente adivinhamos a viver sob ameaça permanente, de tal forma que nem sequer se atreve a fazer queixa.
É completamente insano pensar que este homem (que todos ficámos a saber que já anteriormente tinha agredido a mulher) volta a casa depois do julgamento convencido da sua inocência, legitimado na sua “crueldade insuficiente” pronto a refinar os métodos que usa, pois este não foi o primeiro e certamente não será o seu último episódio de maus tratos.
É terrível imaginar a mulher, permanentemente sujeita a ser maltratada, a viver no terror de voltar a ser agredida e humilhada à vista de todos para, logo a seguir, ser “condenada” em tribunal a ter que passar por piores provações para poder fazer prova de “crueldade suficiente” e, em sobrevivendo, ver-se finalmente livre do agressor.
O que é que a juíza espera? Que a vítima morra às mãos do companheiro ou em consequência das suas agressões? Que o homem chegue a casa e volte a fazer provas sucessivas de agressão até a sua crueldade chegar “ao ponto”?
E qual é o “ponto” a partir do qual a juíza Isabel considera satisfeito o seu critério pessoal de “crueldade suficiente”?
Perante os factos que foram julgados e ficaram provados, é legítimo pensarmos que esta e outras vítimas vão continuar a ser diariamente maltratadas, abusadas e agredidas, porque graças à decisão da juíza Isabel, todos os agressores sabem agora que podem usar o argumento da “crueldade insuficiente”.
O que a juíza Isabel fez, ao tomar a decisão que tomou, foi inocentar os agressores e condenar ainda mais as vítimas. Inexplicavelmente, pôs-se do lado dos que maltratam e maltratou, também ela, a mulher agredida. E mais, conseguiu salvar o agressor de outras condenações menores, nomeadamente as que lhe seriam imputadas pelas ameaças que fez aos agentes de autoridade. Disse a douta juíza que estas ameaças foram simples “desabafos”.
Isso mesmo, desabafos, lemos bem. Já estamos a ver a legitimidade com que muitos cidadãos vão passar a desabafar com as autoridades e a pressa que vão ter para serem julgados no tribunal de Paredes pela juíza Isabel, a padroeira dos agressores.
Neste processo, a juíza Isabel Pereira Neto conseguiu o “inconseguível”, quando justificou que a conduta do agressor foi um ato que não se revestiu de crueldade, insensibilidade e desprezo suficientes para ser considerado crime de violência doméstica.
Imagino que juíza Isabel Pereira Neto não tenha filhas nem irmãs, mas também adivinho que não teve tempo para consultar um bom dicionário antes de proferir a tremenda absolvição. Como não encontrou crueldade, insensibilidade e desprezo suficientes, presumimos que leu a provada e testemunhada agressão como sinal de apreço, gesto de atenção e prova de elevada consideração pela vítima.
De acordo com o seu critério, apertar o pescoço deve ser visto como atitude de deferência e estima, como elogio e louvor, como sinal de empatia, atração e quase adoração. A benevolência com que se arrasta alguém pelo pescoço também não escapou à juíza Isabel que, no seu cânone, a considerou certamente sinónimo de ternura, meiguice e, quem sabe, compaixão.
Já a sua sentença, juíza Isabel, essa foi demasiado cruel.