Aviso: estou a sofrer uma overdose do adjetivo ‘histórico’. Nos jornais e redes sociais, agora, vá de darem o epíteto de ‘histórico’ a todo o evento noticiado. Começa mesmo a ser difícil encontrar algo que não esteja destinado a marcar a humanidade pelos séculos dos séculos.
No fim-de-semana tivemos o acordo da cimeira do clima de Paris, que foi imensamente ‘histórico’. O dito acordo ainda não produziu nada, pode vir a ser boicotado por todos os lados, provavelmente gerará, se aplicado, conflitos entre os países sobre medições de emissões de carbono, compensações monetárias e o que mais se lembrarem; e é mais provável que as emissões de carbono diminuam devido a evoluções tecnológicas do que a acordos dos históricos chefes de estado com egos insuflados que consideram que as suas assinaturas têm poderes mágicos de fechar o buraco do ozono. De qualquer modo, o acordo ainda só produziu pegada ecológica e já nos dizem que é ‘histórico’. Não admira. A Agenda de Lisboa em seu tempo também foi ‘histórica’. Foi aquela cimeira que decretou (e até teve assinaturas dos primeiros-ministros todos da União Europeia, incluindo o inevitável Guterres) que em 2010 a UE seria o bloco mundial mais rico do mundo, com uma economia toda assente na evolução tecnológica. Lembro isto só para o caso do leitor não ter reparado no estonteante crescimento económico que a UE tem tido e nos carros voadores que de vez em quando o ultrapassam na autoestrada.
O acordo-barra-desacordo das esquerdas também foi ‘histórico’, sem surpresas. Já termos pela primeira vez desde que há eleições legislativas um primeiro-ministro que não foi o mais votado, que os eleitores repetidamente disseram não querer para primeiro-ministro, e a consequente degradação da qualidade da democracia que isso traz, não foi nada ‘histórico’, foi o negócio do costume. E também não foi ‘histórico’ – apesar de ser – termos um governo que durará tanto quanto o PCP demorar a decidir que já assegurou por mais uns anos suficientes a manutenção dos privilégios das suas clientelas sindicais.
Mas já havia antecedentes de coisas ‘históricas’ destas que não fazem história. Lembro-me de dois discursos de Obama que ainda nem tinham sido proferidos e já eram ‘históricos’. Um foi sobre a relação entre as raças nos Estados Unidos durante a campanha de 2008 e outro foi o discurso no Cairo, mal foi eleito presidente, versando as relações com o mundo islâmico (e onde tacitamente sancionou a opressão islâmica às mulheres, que a realpolitik é mais forte que a defesa dos direitos humanos no feminino). E é só googlar ‘black lives matter’ para ver como os americanos de diferentes raças estão reconciliados entre si pela ação apaziguadora de Obama. Se olharmos para o Médio Oriente também verificamos a paz que grassou naquela zona à conta dos discursos históricos de Obama, da forma inteligente como se lidou com a Primavera Árabe e mais um ou dois atos históricos.
Evidentemente que tudo o que existe no contínuo do espaço e do tempo é ‘histórico’, as notícias e comentários não nos estão a enganar. Levar os meus filhos às aulas hoje de manhã foi, nesse sentido, ‘histórico’. E o terramoto de Lisboa em 1755 foi super histórico, o desastre nuclear de Chernobyl foi tremendamente histórico, a explosão do Hindenburg foi mega histórica. Claro que se usa ‘histórico’ como abreviatura para ‘aleluia, aleluia, façam soar os tambores, vem aí a felicidade universal’. Mas podiam dar descanso à palavra, pelo menos procurar sinónimos no dicionário e variar.
Porque, de resto, o maior problema nem é o abuso do qualificativo ‘histórico’. É que, no meio de tanta historicidade, perdemos de vista as notícias dos eventos comuns. E fazemos mal. Por exemplo esta desfeita da ASAE ao queijo de Azeitão.
A ASAE andou calminha, graças aos deuses, durante o governo anterior, que lhe fez saber que se devia conter com as multas exorbitantes que vertia sobre as empresas (muitas vezes pequenas e em dificuldades) por coisas sem importância como não ter os preços dos produtos exibidos nas montras. Algo que não prejudica ninguém e que ocorre na maioria das capitais dos países bárbaros que estão connosco na UE. A ASAE amansou – apesar de o governo anterior não ter infelizmente tido a boa ideia de expurgar regulamentações néscias que a ASAE fiscaliza, nem ter reduzido os valores das multas para números proporcionais às infrações e aos danos efetivamente causados – mas aparentemente já se sente politicamente mais apoiada.
O que é sinónimo, claro, de se meter onde não deve (mesmo que tenha cobertura legal para o fazer). Tirando o caso dos queijos de Azeitão conterem elementos tóxicos ou colocarem de alguma forma em causa a saúde dos consumidores, os inspetores da ASAE deviam ficar no escritório a aproveitar o ar condicionado. Como de costume, não interessa a qualidade do produto em si – que nada na notícia diz ser perigoso – mas apenas o cumprimento de burocracias que os legisladores hiperativos com amor aos papelinhos inúteis criam, por questões de auto-satisfação e para dar trabalho aos membros de organismos como a ASAE. Tendo sido criada a denominação de origem protegida do queijo de Azeitão pela associação de produtores, e sendo certificado por um organismo privado, se a empresa em causa não cumpria as regras isso nada mais era que um diferendo entre privados. E os consumidores que julgassem.
Mas o socialismo também se faz destas intromissões dos organismos estatais nos assuntos privados. Habituemo-nos.