Obedecer ou desobedecer, é isso a questão. Será mais nobre a submissão a um poder arbitrário que se declara validado pela vontade colectiva, guiado pelo bem comum e regulado pela lei, ou enfrentar todos os obstáculos sociais e defender a justiça? O dilema é sério, está inscrito na condição humana desde o seu despertar e a sua resolução faz-se acompanhar ocasionalmente pela escolha entre «ser ou não ser», não só do sujeito implicado, como daqueles que, de forma indirecta, possam ser por ela afectados.

Nos mitos judaico-cristãos da criação, a desobediência está na origem da queda do Homem e da sua extraordinária aventura. O Paraíso Perdido (1667), de John Milton (que, recorde-se, conta a história de um anjo que preferiu reinar no inferno que servir no céu), abre precisamente com esse gesto primordial: «Of man’s first disobedience…». À promessa de segurança e paz edénica, a «rebelião adâmica» preferiu a incerteza. Mais tarde, quis redimir-se. Primeiro, tentou-o com Cristo; depois, com o materialismo de Marx – e, numa antítese espiritual, com o amor erótico encenado por Wagner.

Um dos episódios bíblicos mais enigmáticos e disruptivos da fé e da ideia de Deus adiante transmitida pelo Novo Testamento é o do sacrifício de Isaac (Génesis, 22). A obediência de Abraão à escandalosa ordem revelou-se um manancial de complicações interpretativas. Se a maior parte dos comentadores das Escrituras aceita, sem reservas, a glosa canónica do episódio –, por vezes refugiando-se, para lê-lo como o decisivo teste de fé, na constatação de que Deus consumou, com o seu próprio Filho, o sacrifício exigido ao fundador da nação hebraica –, outros não se conformaram com o veredicto implícito na decisão de Abraão e tentaram articular conjecturas que pudessem consolidar a fractura ética exposta pelo gnaticídio na forma tentada: entre a obrigação religiosa e o dever de proteger a progénie, Abraão optou pela primeira.

O sacrifício realizado por Abraão é, por conseguinte, o dos valores. No momento em que agarra no cutelo para degolar Isaac, ele já é um assassino e não há explicação que o absolva sem rebuscadas tergiversações teológicas. No poema A Parábola do Ancião e do Jovem, escrito na sequência da Primeira Guerra Mundial, Wilfred Owen ignora a volta-face original e canta a imolação de Isaac. Quer o acto físico tenha sido concretizado, quer não, o que a montanha de Moriah testemunhou foi a ruptura da relação sagrada entre pai e filho. Em recompensa, Deus concedeu a Abraão a paternidade de um povo. O patriarca sacrificou a sua própria humanidade em nome de um destino colectivo.

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Cabe aqui abrir um parêntese e convocar o filme Atrás do Espelho (1956), de Nicholas Ray, e a cena em que Ed, no auge do delírio de cortisona, resolve matar o filho para que este não cresça e se transforme num delinquente. Para justificar a análise de custos (individuais) e benefícios (colectivos), e a respectiva conclusão, abre a Bíblia e lê o capítulo 22 do Génesis. Assim que Lou, a sua mulher, lhe lembra que Deus travou Abraão antes da concretização do crime, Ed profere a célebre réplica: «Deus estava errado!»

Se Abraão resiste à caracterização como um vulgar criminoso em razão da fé e do contexto mitológico que o envolve, a obediência por procuração de Ed não tem desculpa (mesmo se admitirmos que na sua intenção está subentendida a desobediência à estrutura de valores da mediocridade burguesa). Em Story of Isaac, Leonard Cohen chama a atenção para as consequências de reproduzir, em nome de um bem maior, os martírios rituais no domínio do real. Em 1972, num concerto em Berlim, Cohen apresentou a mesma canção como uma fábula «sobre aqueles que sacrificariam uma geração em favor de outra», pondo destarte a tónica nos danos paralelos da subordinação fundada em cálculos de utilidade. Por vezes, o benefício dos escolhidos é o prejuízo irremediável dos descartáveis.

As histórias bíblicas familiarizam-nos com a nossa condição, incluindo os mecanismos mentais e colectivos que actuam nos bastidores da obediência incondicional. No entanto, desenvolvem-se num contexto místico, lugar metafísico e sede de todas as paixões que se rege por normas específicas. Na dimensão dos mortais, não há lugar para tanta complacência e a submissão sem critério está interdita a qualquer pessoa com consciência. Como diz Cohen, a páginas tantas, na canção mencionada, «um estratagema não é uma visão».

No campo secular, o mais célebre tratado sobre o tema é sem dúvida A Desobediência Civil (1849), do norte-americano Henry David Thoreau, recentemente editado no mercado português com nova tradução. Farol providencial para a navegação na fronteira entre o público e o privado, Desobediência alerta para o perigo das ditaduras da maioria, defende a prioridade da justiça em relação à lei, repudia a lealdade ilimitada ao governo e declina quaisquer direitos do Estado sobre o cidadão e a sua propriedade. No final, Thoreau declara que um regime não é livre enquanto «não reconhecer o indivíduo como poder superior e independente, do qual deriva todo o poder e autoridade que o Estado detém».

Menos citado ao dia de hoje, mas de igual importância, é o Discurso sobre a Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie. Posto a circular, em cópias manuscritas, nos meios cultos da região de Bordéus antes de 1558, o texto de La Boétie enunciava a tese de que a subordinação à tirania não é necessariamente uma jogada forçada. Ao invés, resulta, em variadíssimas ocasiões, da sujeição voluntária, na medida em que, qualquer autoridade, por muito forte que seja, não consegue controlar uma população sem a sua colaboração activa ou passiva. O Discurso avisa que na génese e continuidade do despotismo está a debilidade moral daqueles que o asseguram através da servidão deliberada. O medo, da violência do Estado ou das narrativas da sua propaganda, deixa assim de ser uma razão válida na generalidade das circunstâncias, para ficar reduzido à medida da cobardia do povo. Muito antes, já Cícero havia notado que «a servidão é a submissão de um espírito enfraquecido e cobarde, carecendo de vontade própria.»

Estes dois panfletos enunciam um conjunto de princípios fundamentais para a exploração do território que separa a desobediência da relação cordial com o Estado. E acrescentam que, se forem relegados para os bastidores com vista a entregar o palco ao sofisma do bem comum ou a outros disparates colectivistas, os princípios levam consigo a legitimidade do poder político, deixando-o entregue à prepotência das massas ou ao arbítrio dos iluminados.

A mais antiga, e ainda hoje a mais eloquente obra sobre a desobediência civil é a tragédia Antígona, de Sófocles, escrita no século V a.C.. Podíamos recuar à ira de Aquiles, mas na rebelião do filho de Peleu esconde-se um capricho quase infantil. Além do mais, o episódio desenvolve-se numa estrutura marcial que dificilmente apela a princípios gerais. Em Antígona, pelo contrário, encontra-se um tratamento consistente e universal do conflito entre o privado e o público, o indivíduo e a polis, a nomina (tradição) e o nómos (lei). Como assinala Simone Weil, Antígona «é a história de um ser humano que, sozinho, sem nenhum apoio, se opõe ao seu próprio país, às leis do seu país, ao chefe de Estado, e que naturalmente é morto de seguida.»

A lei referida por Weil é o édito que ordena que Polinices, irmão da heroína e morto na luta fratricida pelo trono de Tebas, seja deixado insepulto e à mercê dos elementos e dos animais. O édito fora decretado pelo novo rei, Creonte, mas Antígona transgride-o e enterra o irmão. Pela ousadia, é sentenciada ao emparedamento em vida. Pressionado pelo Coro e por Hémon, seu filho e prometido da insubmissa, o rei acaba por recuar. Contudo, fá-lo demasiado tarde: quando dá a ordem de libertação, Antígona e Hémon já se haviam suicidado. A obstinação de Creonte é, a par da lealdade de Antígona aos valores ancestrais, a origem da tragédia.

Antígona sacrifica-se por um princípio e um costume sagrado. Ao declarar «a Creonte não lhe é dado separar-me dos meus», traça, na tradição, os limites do Estado e do poder político: as leis devem ser justas e não podem, em caso algum, corromper o espaço privado ou violar a lei divina. Em face da disputa entre o particular e o público, o cidadão justo elege o particular. Camões afirmou «Que menos é querer matar o irmão / Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta». Camões estava errado.

Filoctetes, também de Sófocles, trata o mesmo assunto num sistema fechado e hierárquico, no qual o indivíduo é coagido a obedecer pela sua posição inferior. Lidas em conjunto, Filoctetes e Antígona complementam-se e entabulam um diálogo sobre a teia de relações entre a consciência individual, as razões de Estado e a hierarquia do poder.

Em Filoctetes, o facundo Ulisses aparece na sua pior versão: a do político destituído de escrúpulos para quem os objectivos justificam todos os meios. Mestre da persuasão e da retórica aristotélica, promete a fama e a glória, invoca o superior interesse do Estado e sublinha a condição de subalterno de Neoptólemo para o manipular e convencer a mentir a Filoctetes. Ulisses é a figuração do poder despótico.

Neoptólemo, em violação dos seus princípios, acata as ordens. Porém, ao ser confrontado com a injustiça perpetrada contra Filoctetes, cessa de pactuar com a intriga. Neoptólemo percebe, nesse momento, que deve servir os seus valores e ideia de justiça, e não, como argumentara Ulisses, aqueles de quem é subordinado.

Quanto a Filoctetes, é o herói trágico da peça. Após dez anos de solidão, emociona-se com a perspectiva de voltar a casa. Ao perceber que está a ser enganado, vê-se forçado a escolher entre a observância e a morte. Não hesita: prefere morrer antes de abdicar da liberdade e da dignidade.

Estes e outros mitos não são histórias efémeras ou datadas; são resumos da relação dos seres humanos com o mundo, janelas com vista para problemas eternos, transcendentais, e é por isso que escapam ao trabalho inexorável do tempo. Ora veja-se o que aconteceu no último dia dos finados, quando os Portugueses, por decreto do Governo, foram proibidos de circular entre concelhos e prestar homenagem aos seus mortos, isto depois das cerimónias fúnebres já terem sido restringidas, ou mesmo proibidas, durante meses. À semelhança de Creonte, o Estado profanou chão sagrado. Porém, ao contrário do decreto de Tebas, que não consta que enfermasse de ilegalidade, a resolução do Conselho de Ministros foi declarada ilícita por um tribunal competente.

Para espanto dos mais ingénuos, a decisão dos juízes foi recebida com indiferença pelo Governo. Pouco tempo antes, quando já se adivinhava a sentença, havíamos assistido, incrédulos, às contradições e declarações atrapalhadas do presidente da república sobre o assunto, em mais uma demonstração de um descaramento sem fim, para não dizer carácter soez. Espera-se que, um dia, todos os responsáveis e cúmplices deste crime lesa-democracia venham a responder política e judicialmente. Quem conhece bem a natureza do regime, esperará, obviamente, sentado.

Apesar da ilegalidade desta e de outras leis avulsas que têm vindo a pôr em causa a liberdade dos Portugueses em troca de segurança, a obediência, forçada por multas, intimidação policial e uma infame campanha da comunicação social, tem sido generalizada, deixando pouco espaço de manobra àqueles que não pretendem sujeitar-se aos abusos. É claro que, numa sociedade aberta, qualquer cidadão é livre de submeter-se ao que bem entender. Contudo, a servidão voluntária tem um potencial viral: o voluntarismo de alguns conduz a opressão de todos, e não há barreira de imunidade suficientemente forte, pelo menos sem o recurso à violência, que consiga circunscrever o surto. O respeito devido aos outros aconselha os mais submissos a praticar o isolamento social durante uma epidemia liberticida, até porque, se a obediência ao Estado não é um imperativo categórico, a obediência a um bando de demagogos e oportunistas é uma indecência.

Na verdade, o problema nem sequer está bem formulado. A obediência ao Estado é uma contradição nos termos. A instituição está ao serviço dos cidadãos, é pago por eles, logo, é ela que lhes deve obediência. Destes factos resulta que o Estado deve estar exposto, como os educandos de outrora, à coação da férula. A desobediência civil é, quase por definição, pacífica, mas, uma vez chegados definitivamente a uma conjuntura que a solicita, uma dúvida se impõe: onde está a fronteira, na escala das afrontas à liberdade, que separa a reacção pacífica da violenta? Não obstante ninguém ser dono de uma resposta decisiva, cresce a suspeita de que já nos encontramos nessa região limítrofe.

Em conclusão, calhou-nos em sorte o dúbio privilégio de assistir à tentativa de suicídio das democracias ocidentais. Esperemos não vir a ser também chamados a definir o limite mais remoto da desobediência, aquele a partir do qual a violência não só é legítima, como queda atenuado o receio dos efeitos imponderáveis do seu exercício. Aos executores de leis injustas, desrespeitadoras da esfera privada, da tradição, da liberdade e da dignidade, deve ser explicado, com urgência, que o sangue poderá vir a ser o epílogo das suas teimosias.