Isto devia ser um comentário ao Congresso do PCP. Eu sei que respondi afirmativamente ao email do Miguel Pinheiro que me perguntava se poderia fazer uma análise ao Congresso do PCP. Valha a verdade que respondi com um lacónico sim e já não foi lacónico por acaso. Qual moinha persistente, o assunto já me andava a incomodar. Mas eis que na sexta-feira dou com este título “António Filipe: “É simplista e errado qualificar Fidel como ditador e depois seguiu-se a citação de João Oliveira “PCP não é força de suporte do Governo”. Perante o descaramento, nascido de quem goza de um estatuto de inimputabilidade e sabe que aquilo que nos outros é crime neles é graça, dei comigo a dizer para mim mesma: acabou. Não vou comentar congresso partidário algum porque não aconteceu congresso partidário algum. Ou, melhor dizendo, não vou fazer de conta que estamos perante um congresso partidário no sentido ideológico do termo e perder uma parte do meu tempo a ler textos e a ouvir discursos para no fim concluir algo de “bem bonito, moderno e original” sobre os destinos do PCP. Também não me apetece teorizar sobre a sucessão de Jerónimo de Sousa ou sobre a eficaz máquina dos comunistas na organização deste e de outros eventos. E muito menos acho graça ao faz de conta que o PCP é um partido vintage com aquele design estalinista do passado mas adequado aos tempos modernos. Olho para aquilo tudo e já não vejo os velhinhos do Couço que acreditavam que a URSS era uma sucessão de amanhãs cantantes. E os “intelectuais” já nem um sorriso condescendente me provocam.

É para mim claro que em Almada não está a ter lugar um congresso partidário mas sim um encontro de um dos mais eficazes e resistentes grupo de interesses existente em Portugal. Do seu sucesso faz parte a utilização de uma linguagem que os desliga dos resultados: apesar de tudo o que os comunistas defendem só ter gerado pobreza, os trabalhadores nunca vivem melhor por causa das empresas e da economia, mas sim porque o PCP lutou e reivindicou. Defensores das maiores tiranias da Terra, não só conseguem passar por defensores dos direitos humanos como são capazes de declarar, sem que daí lhes advenha qualquer consequência, que Fidel não era um ditador, que a Coreia do Norte quiçá é uma democracia…

Que o PCP use a retórica que lhe convém não me choca. O que não me parece normal é que tenhamos de fazer de conta que os comunistas o fazem porque, quais viajantes perdidos de uma qualquer máquina do tempo avariada, nada mais lhes resta. Os partidos têm programas para governar os países. Os congressistas de Almada, que estou certa jamais quereriam viver num país governado por comunistas (a não ser, claro, que fizessem parte dos quadros dirigentes, mas mesmo esses mandariam os filhos e os netos estudar no mundo capitalista) têm um objectivo bem diferente: que o país garanta ao PCP um estatuto imune ao número de votos que o partido obtiver nas eleições. (Tente-se traduzir este objectivo apontado por Jerónimo de Sousa no seu discurso de encerramento: “luta pelos direitos dos trabalhadores com alteração dos aspetos gravosos do Código Laboral” e é precisamente a esses privilégios da oligarquia sindical comunista que chegamos.) Porque o poder do PCP não está tanto na Assembleia da República mas sim nas portarias de extensão, no enquadramento legal que dá aos sindicatos o monopólio da representação nas negociações dos acordos de trabalho, no controlo dos organogramas das empresas públicas, nas comissões de utentes e representantes, onde os seus quadros, eleitos cada vez por menos pessoas, multiplicam a visibilidade e o poder dos comunistas através de um conglomerado de uniões, federações e confederações. E é desse mundo e de como o perpetuar para lá da vida deste Governo que o PCP trata sob a capa mediaticamente diáfana da luta, da linha, do novo PCP, da direita, dos trabalhadores, dos “faz de conta que são operários” e “intelectuais” (o que intelectualizarão essas almas?) eleitos para o comité central…

E é esse mundo que, em troca de ser primeiro-ministro Costa, tem alimentado e reforçado. Esse mundo que agora silenciosamente cresce nas suas prerrogativas vai explodir-nos em contestações, indignações e protestos quando qualquer uma das alíneas dos seus poderes for posta em causa. E mais uma vez vamos ver os mesmos rostos que passam das comissões para as direcções sindicais e das direcções sindicais para o núcleo de activistas… a bradar contra os atropelos, a miséria e todo o mais vocabulário neo-realista que os comunistas sacam do armário quando os seus privilégios são postos em causa.

Por fim, só mais uma coisa: parem com a conversa do novo PCP e o facto de pela primeira vez o PCP apoiar um governo. Este é o PCP de sempre. É o mesmo que deixou a extrema-esquerda na rua em Novembro de 1975 e se manteve de pedra e cal no VI Governo, o mesmo que por palavras combatia porque era de direita mas de cujo elenco o PCP fazia parte.

O PCP apoia e apoiará este ou qualquer outro Governo enquanto daí retirar vantagens para se blindar no aparelho de Estado. Fazer uma coisa e dizer o seu contrário é aquilo em que o PCP se especializou. Que o PCP o faça faz parte da sua História e explica o seu sucesso. O resto é propaganda. E da boa. O que não entendo e me cansa é que todos tenhamos de viver isso com o abandono de quem escuta um fado.

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