‘Spin doctor’ (do inglês ‘spin’, verbo, no sentido de ‘girar’, ‘manipular’ ou ‘torcer’, e ‘doctor’, também como verbo, no sentido de ‘alterar algo para obter o resultado desejado’) refere-se a um “profissional especialista em controlar a apresentação dos factos, eventualmente torcendo-os, a fim de favorecer determinada interpretação ou opinião. Frequentemente ao serviço de políticos, sobretudo durante as campanhas eleitorais – mas também de empresas que enfrentam crises ou pessoas de grande exposição pública, tais como artistas, desportistas e indivíduos envolvidos em ações judiciais e escândalos – o ‘spin doctor’ dedica-se a influenciar o público, mediante a apresentação de informações enviesadas à comunicação social”. Cito, de um dicionário.
Esta ‘profissão’ não pode ser confundida com a de muitos e bons profissionais da comunicação (diretores, consultores de comunicação e assessores de imprensa) que cumprem a sua função de forma intelectualmente séria e eticamente correta, respondendo à legítima necessidade que instituições, empresas, artistas, desportistas ou políticos têm de transmitir informação à comunicação social e aos seus públicos.
Quanto aos chamados ‘spin doctors’, eles tiveram o seu apogeu na segunda metade do Século XX, nos EUA, mas perderam espaço, quando a imprensa começou a desenvolver mecanismos de ‘fact-checking’, que depois se generalizaram pelo resto do mundo. As manipulações e os populismos que os “spins” criavam tiveram, por isso, durante algumas décadas, menor impacto, graças a esse papel mediador da informação que o jornalismo assume.
Também em Portugal, a imprensa desempenhou um importante papel mediador da informação, sobretudo a partir do final dos anos 80, reduzindo o espaço ao populismo e arrumando muitos “spin doctors” para cadeiras mais discretas e menos lucrativas, muitas vezes em meio académico.
Contudo, com o decorrer do Século XXI, o aparecimento da internet e das redes sociais, mas sobretudo o enorme esmagamento do setor da comunicação social, em especial da escrita, diminuiu muito o rigor do escrutínio político e reduziu o papel mediador dos jornalistas. E a mensagem passou a viajar de uma forma muito mais rápida e direta, contornando o crivo, a investigação e o contraditório.
E foi este caldo de cultura provocado pelos sistemáticos ‘short-cuts’ no processo de comunicação, que voltou a abrir espaço aos ‘spin doctors’, que assim ressurgiram em muitos países, ajudando a erguer fenómenos populistas como os de Jair Bolsonaro, Donald Trump ou Boris Johnson e a aproximar do poder, movimentos extremistas, como em França, Itália ou na Hungria.
A manipulação da verdade e dos dados, por parte da propaganda montada pelos “spin-doctors’ da campanha pró-Brexit atingiram níveis tais que o atual primeiro-ministro britânico se deu ao luxo de confessar, no dia seguinte ao referendo, que afinal não era bem verdade que as contribuições da Grã-Bretanha para a União Europeia seriam diretamente revertidas para o Serviço Nacional de Saúde. “Podemos ter exagerado bastante sobre esse assunto, sim”, reconheceu Boris Johnson, matando, após as eleições, o principal “sound-bite” e promessa eleitoral da campanha que empurrou o Reino Unido para fora da UE. Mas nem a mentira ou a confissão da mentira o impediram de chegar, meses mais tarde, a primeiro-ministro. Também essa operação foi posta em marcha através de uma conspiração interna no seu partido, recorrendo aos mesmos ´spin-docters´ do Brexit. O principal deles viria mais tarde a demitir-se do Gabinete de Johnson, para onde tinha migrado, vindo a escrever um livro no qual ‘põe a nu’ as mentiras, falácias e os truques usados pelo primeiro-ministro, de quem era, afinal, cúmplice.
Não espanta que a linguagem populista e os fenómenos extremistas estejam em expansão também em Portugal, pois as causas são as mesmas: a velocidade da informação e o esmagamento do papel mediador dos jornalistas. Os truques e manipulações também são semelhantes e a ascensão do populismo, maniqueísmo e do extremismo, é evidente.
Fazem-nos através de uma excessiva simplificação da comunicação (ao ponto de infantilizarem os públicos); da distorção de gráficos e dados estatísticos; do uso distorcido da verdade e das meias-verdades; da dramatização de processos e do abuso da curta memória por parte da opinião pública e dos jovens jornalistas que agora ocupam muitas redações. A perda de memória das redações, assunto que o jornalismo debate há muito tempo, e a escassez de espaço mediático formal são o ambiente certo para proliferarem aquilo que Trump apelidou de “verdades alternativas”, que levam ao incumprimento da palavra dada e ao contorcionismo perante a promessa.
Um estudo recente do investigador Giovanni Ramos, da Labcom/UBI — Universidade da Beira Interior, mostra que existem em Portugal mais de 60 municípios em “deserto de notícias”, ou seja, concelhos inteiros onde não subsiste qualquer órgão de comunicação social. Mas mesmo cidades como o Porto e Lisboa estão praticamente desprovidas de jornalismo local, uma vez que a pouca imprensa sobrante se dedica, quase exclusivamente, à informação nacional e de agência.
O emagrecimento do bolo publicitário disponível para os meios tradicionais, leva, por outro lado, a que em muitos municípios, os meios de comunicação social estejam cada vez mais dependentes do poder. E no país, salvo honrosas exceções onde incluo o Observador, também as contribuições da publicidade do Estado podem estar a condicionar fortemente a independência do setor.
Uma investigação independente, realizada nos EUA e recentemente citada pela CBS no programa “60 minutes”, também exibido na SIC, demonstrou que as cidades e regiões norte-americanas onde se registaram semelhantes apagões mediáticos, devido à aquisição em massa de jornais por parte de grandes grupos financeiros – que encerraram títulos ou reduziram as redações à sua fração mais ínfima – o fenómeno da corrupção disparou na proporção inversa.
Outros estudos têm vindo a demonstrar que a comunicação social portuguesa transmite, genericamente, mais de 90% de notícias com origem apenas em fontes organizadas, ou seja, informação de agenda e, de alguma forma, controlada ou promovida por iniciativa de instituições governamentais, locais ou empresariais.
Neste quadro, o recrudescimento dos ‘spin doctors’ é mais fácil.
A recente tentativa portuguesa de criar uma “lei da rolha”, através da instituição de uma espécie de “censores da web”, para escolherem as verdades oficiais e as mentiras proibidas, foi apenas uma péssima ideia, que só poderá esbarrar no Tribunal Constitucional. E não sendo nem desejável nem possível implementar “verdades oficiais” e regular a informação difundida nos dias de hoje, resta-nos a autorregulação e a consciência dos nossos políticos e empresários. Talvez fruto de 48 anos de ditadura e de uma matriz constitucional socialista, Portugal nunca teve grande cultura de autorregulação e, assim, aqui chegámos, ao paraíso dos “spins”.
É certo que, finalmente, surgiu em Portugal a velha tradição anglo-saxónica do ‘fact-checking’, mas, por si só esta ferramenta não é suficiente para travar o populismo e a manipulação, como bem vimos com o tema da pandemia.
A distorção da verdade, o uso dos números de forma enviesada e o aproveitamento da impreparação técnica por parte da generalidade dos jornalistas e dos portugueses em matéria sanitária foram o prato do dia durante dois anos. Em lugar da verdade, da ação e do escrutínio, usaram-se dados não devidamente transformados em informação para difundir medo e justificar medidas que nada tinham a ver com necessidades sanitárias, prolongando o poder e esmagando o espaço às oposições. A preocupação dos decisores raramente foi a de salvar vidas ou a economia, mas sim de se salvarem no caos, através do ‘spin´ diário das conferências de imprensa.
Os últimos atos eleitorais em Portugal mostraram também sinais preocupantes sobre este recrudescimento dos ‘spin doctors’. Em Autárquicas ou em Legislativas, eles enganaram tanto que se chegaram a enganar a si próprios e aos seus clientes, com a projeção de resultados miríficos, sondagens manipuladas e estratégicas mirabolantes. Recordo até um deles, que há uns anos deu uma entrevista, confessando os “truques” e “manipulações” que, supostamente, teria urdido durante umas eleições legislativas, para ajudar a eleger um primeiro-ministro. Orgulhava-se, aparentemente, de o ter feito.
E vem isto a propósito da contratação recente por parte do Governo de um diretor de comunicação. Com ela, ficámos a saber que o Executivo português funcionava sem um coordenador de comunicação geral, capaz de organizar a informação e determinar o seu ritmo, evitando atropelos entre ministérios e melhorando a eficácia da comunicação institucional. E esse é o primeiro espanto. O espanto de nunca ter havido tal figura e de só agora António Costa se ter lembrado de tão óbvia necessidade.
Mais vale tarde do que nunca, e é por isso uma boa notícia que o Governo passe a ter um profissional da comunicação, consultor e assessor, capaz de fazer um trabalho que sempre deveria ter existido. A bem da imagem do Governo, mas também do País e, sobretudo, do correto esclarecimento público.
Não conhecendo a pessoa em causa, dou-lhe todo o crédito e benefício, acreditando que não se trate de mais um ‘spin doctor’, mas sim de alguém que acabe de vez com a tentativa de infantilização da opinião pública e com os ‘sound-bite’ que alimentaram, até ao limite do compreensível, as carreiras de personagens como Graça Freitas ou Marta Temido.
Diga-se que as primeiras semanas de trabalho deste novo consultor e diretor de comunicação do Governo não foram fáceis. A espera de três dias na reação ao caos nas urgências e a forma como, depois, a Ministra da Saúde foi largada, em direto nas TVs, contra uma parede e rodeada por jornalistas, sem que nada tivesse para lhes dizer, foram maus presságios. E foram erros que, em 72 horas, deitaram ao lixo o crédito que estranhamente Marta Temido detinha.
A menos que não tenham sido erros e que a ideia não fosse protegê-la e informar a opinião pública, mas apenas criar um novo Eduardo Cabrita, que possa acartar às costas todos os pecados do Governo, num calvário mediático que deixará o Primeiro-Ministro a correr, incólume, em pista própria. Mas se assim é, então o que está em curso não é coordenação de informação e comunicação do Governo, como eu ainda espero que seja. Se assim é, trata-se apenas de mais do mesmo ‘spin’ que, podendo até ajudar a eleger Primeiros-Ministros, apequena um povo e a classe, através de técnicas que o dicionário bem descreve e que transcrevo no início desta crónica.
A dúvida fica, portanto, após um arranque difícil a que todos têm direito. A nova figura do Governo é mesmo o diretor de comunicação que tanta falta tem feito ao país, como espero e desejo que seja?
É que convém não esquecer que os ‘spin doctors’ podem conjunturalmente mostrar resultados, mas como alguém disse um dia, é possível enganar muitas pessoas durante algum tempo ou algumas pessoas durante muito tempo. O que não é possível é enganar toda as pessoas durante todo o tempo. Que o digam Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson ou a própria Marta Temido. Todos foram apanhados nos seus próprios truques, todos em curva descendente, arrastados pelo peso da manipulação e das mentiras. Todos vítimas dos ´spin-doctors´ que geriram, a determinada altura, as suas carreiras.