A dissimulação é apenas um dos elementos da desinformação, uma actividade mais abrangente e complexa que visa condicionar, influenciar ou até moldar as percepções, crenças e comportamentos de actores políticos, movimentos sociais e estados. A mais antiga e eficaz forma de dissimulação é a ocultação simples, que depende apenas do secretismo. O exemplo mais conhecido desta forma de ocultação é o desenvolvimento da bomba atómica.

O secretismo pouco tem a ver com o uso de narrativas falsas ou de elaboradas coreografias que podem indiciar implicitamente o que é ocultado. A dissimulação complexa, dizem os investigadores, envolve mais elementos e, como tal, é menos difícil de vislumbrar, não obstante a maior complexidade analítica.

Por exemplo, quando a Coreia do Norte mostra ao mundo mísseis falsos nos seus pomposos desfiles militares, um analista perspicaz pode plausivelmente considerar a possibilidade de que o numero de mísseis à disposição de Kim Jong-un é menor do que o anunciado e que os testes transmitidos em tempo real na televisão estatal são meros estratagemas que visam amplificar a percepção do seu poder militar para dissuadir ou intimidar estados inimigos. Todavia, imaginem, por exemplo, que os ardilosos estrategos norte-coreanos supõem, correctamente, que a apresentação de mísseis falsos poderá induzir os analistas das potências rivais a presumirem que Pyongyang tem poucos mísseis ao seu dispor quando, na realidade, tem muitos. Se for este o caso, a dissimulação norte-coreana é uma maquiavélica orquestração inductiva e não uma mera tentativa de ocultar uma suposta escassez de mísseis. Sem acesso a dados empíricos irrefutáveis as dúvidas dos analistas persistirão.

A ocultação complexa dificulta imensamente os processos de decisão, introduzindo incertezas e hesitações que moldam o regime temporal a que estão sujeitos os estados inimigos. Teoricamente, um rival confuso não pode agir de imediato. Contudo, é sabido que a confusão resultante do “jogo de espelhos” pode provocar uma decisão precipitada. A sujeição à incerteza num contexto de crise existencial pode ser simplesmente intolerável. As causas da Primeira Guerra Mundial, recordemos, tiveram mais que ver com suposições e percepções falaciosas do que com factos.

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A espiral da escalada tem sempre como pano de fundo a volatilidade, um infernal “estado liminal” (Zygmunt Bauman) no qual a corroboração de crença X faz-se acompanhar pela dissolução da certeza Y. Antoine Bousquet, um dos mais interessantes investigadores destes assuntos, inventou um neologismo que, apesar de não se referir explicitamente ao que acabei de mencionar, parece-me especialmente pertinente: “a guerra caoplêxica”. A guerra centrada em rede, a produção exponencial de narrativas falsas, as manipulações (Ciber etc.) e as coreografias enganosas podem facilmente engendrar situações em que a suposição suplanta o facto e o medo conquista a certeza. A tecnologia desempenha um papel central e paradoxal neste bizarro fenómeno: ao mesmo tempo que permite a obtenção de vastas quantidades de informações que conferem validade ao mito do controle absoluto da realidade, permite igualmente uma capacidade colossal de manipulação. Um mundo bizarro onde cada capacidade pode ser uma vulnerabilidade.

Qual é a principal vantagem da dissimulação simples para um estado que compete num mundo anárquico com outros estados? A mais importante é a de assegurar que os estados rivais não possam condicionar ou interferir na formulação e implementação de determinada estratégia ou actividade. Esta é uma vantagem preciosa para qualquer realpolitiker. Quando as capacidades de estado X permitem a execução das estratégias delineadas pela liderança política, o secretismo austero da ocultação simples permite levar a cabo um fait accompli (facto consumado). É importante ter em conta que a capacidade real de um estado tem muito mais que ver com eficácia do que com poder bruto.

Os custos associados à alteração de um fait accompli são quase sempre muito superiores aos custos da alteração de uma situação antecipada. Naturalmente, os factos consumados, em virtude da sua natureza distincta, produzem efeitos diferentes. Uma invasão imprevista de um país membro da NATO certamente provocaria uma resposta mais rápida e assertiva do que um bombardeamento relâmpago de um reactor nuclear inoperacional (Osirak, 1981). O impacto de um facto consumado na política internacional depende crucialmente dos seus efeitos objectivos (materiais) e subjectivos nos interesses vitais das potências mais poderosas e nas condições sistémicas que as afectam. Pode permitir uma reconfiguração substancial das relações de poder e da própria natureza do sistema internacional.

Qual é a principal desvantagem da dissimulação simples que assenta apenas no secretismo? Podemos responder a esta importante pergunta com outra interrogação: como é que se pode executar eficazmente uma estratégia complexa quando apenas alguns decisores conhecem-na? Alguns eminentes especialistas, como Michael Kofman (CNA, EUA) e outros, argumentam que o secretismo excessivo foi um dos erros cometidos por Moscovo na sua invasão da Ucrânia. A coordenação atabalhoada das tropas russas pode, segundo estes especialistas, ter sido causada por um secretismo palaciano que negou aos generais no terreno o conhecimento pleno da estratégia militar do Kremlin.

Uma outra forma interessante de dissimulação é a da obfuscação conceptual. Quando Moscovo decidiu invadir a Ucrânia, o Kremlin definiu a invasão como uma “operação militar especial.” Porquê? Principalmente por duas razões. Primeiro: politicamente, é muito difícil legitimar uma guerra contra um “povo irmão.” Segundo: uma guerra pode ser ganha ou perdida, ao contrário de uma “operação militar especial.” A orquestração conceptual do Kremlin é reveladora. O Czar decidiu não chamar os bois pelos nomes certamente porque considerou a possibilidade de que uma guerra poderia ser mal vista por boa parte do povo russo ou, igualmente importante, porque sabia que a guerra era, e seria tida, como moralmente e juridicamente indefensável e, por conseguinte, ilegítima. De certa forma, o uso da expressão “operação militar especial” pode ser interpretada como um mea culpa ante bellum. Um analista mais audacioso poderia até contemplar a possibilidade de que o uso da dita expressão antecipa, qual premonição aterradora, a possibilidade de uma derrota.