A identidade dos povos escreve-se nas páginas da História. Como europeus, sabemo-lo bem. Carregamos as cicatrizes de duas guerras mundiais e a sabedoria da reconstrução. Transportamos as ambições e os malogros das revoluções do Iluminismo e o aguilhão melancólico da reacção romântica. Herdámos a memória dos Descobrimentos, a urgência missionária do encontro com o outro e as marcas ignominiosas da sua exploração. Trazemos nos pés o rasto fúnebre dos exércitos, a marcha sofrida dos grandes movimentos sociais e as pegadas esperançosas dos peregrinos de todos os tempos. Somos, como no feliz adágio de Bernardo de Chartres, anões aos ombros de gigantes, no duplo sentido que a frase encerra: vemos mais longe que os nossos antepassados e, no entanto, sabemo-nos menores do que eles.

As nossas raízes mergulham fundo no passado. Fomos marcados pela modernidade, mas não nascemos com ela. A nossa cultura brotou do fértil encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma. Somos filhos de São Paulo, a pregar Cristo no areópago de Atenas (Act 17). Filhos de Platão e Agostinho, de Aristóteles e Tomás de Aquino, de Teresa de Ávila e Pascal, de Dante, Dostoiévski e Tolkien. Filhos das parábolas evangélicas, da maiêutica socrática e do Direito romano. Filhos da Ágora, do Senado e dos mártires das catacumbas. Filhos dos mosteiros, das catedrais e das universidades que à sua sombra floresceram. Filhos da carta comunal, da quaestio disputata, da cantiga de amigo, da epopeia em decassílabo, do soneto e do panfleto.  Filhos, enfim, de um entrelaçamento frutífero de fé e razão, que não se negam mutuamente, mas caminham lado a lado, reforçando-se uma à outra e podando-se reciprocamente dos excessos.

Saramago, figura insuspeita, reconhecia-se um ateu «empapado de valores cristãos». Tinha razão, é claro, e tal marca, escrita no sangue e na terra, não é fácil de apagar. Isso mesmo nos explica o historiador Tom Holland em Domínio: como o Cristianismo transformou o pensamento Ocidental (2022), um relato minucioso de como a novidade cristã irrompeu num continente sombrio e semeou nele os gérmenes de uma cultura nova e mais digna. Há dois mil anos, os espartanos afogavam os recém-nascidos que lhes pareciam mais frágeis e os povos germânicos sacrificavam os primogénitos para aplacar a ira das dríades que viam despontar por detrás das árvores, dos rios e dos relâmpagos. A Europa estava cheia de escravos, de sacrifícios humanos, de circos de feras, de leis sem força e de forças sem lei. E depois, numa periferia recôndita do Império Romano, um profeta morreu crucificado, alegando ser o Filho de Deus, e os seus seguidores, um punhado de gente simples – um zelota, um cobrador de impostos reformado, uns tantos pescadores analfabetos – largaram pela Judeia e pela bacia do Mediterrâneo a pregar a Sua ressurreição e a vinda do Reino de Deus, que já não estava reservado à exclusividade do Povo de Israel, mas queria dilatar-se à Humanidade inteira, e foram até ao martírio no seu desejo de testemunhar a Boa Nova.

O tempo cindiu-se ao meio – antes de Cristo e depois de Cristo – e o mundo mudou para sempre. Aos Gálatas, Paulo anunciava: «não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gl 3, 28). Todos os combates pela igualdade, mais ou menos bem direccionados, são herdeiros deste clamor do Apóstolo.

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O espírito inovador europeu, essa curiosidade benfazeja que se debruçou sobre o mundo e foi procurando conhecer as leis da Física e da Química, a taxonomia das plantas, dos animais e das rochas, a revolução dos astros e o traçado dos continentes, o funcionamento do corpo humano e as possibilidades da tecnologia – nada disso teria surgido sem que existisse, no coração dos europeus, uma confiança crente de que o mudo existe e é bom; de que a realidade é estável, é fiável e se oferece generosamente à perscrutação humana. Inquirimos, procurámos, experimentámos, apenas porque alicerçados na certeza de que «era tudo muito bom» (Gn 1, 31). Erguemos catedrais no centro das nossas cidades, soprámos vidro colorido para forjar altos e belos vitrais, transformámos blocos de mármore na Pietà, rendemo-nos às harmonias de Bach e do padre Vivaldi, e contámos a História da salvação no tecto da Capela Sistina, para que outros vislumbrassem com os sentidos a beleza, a bondade e a verdade que os nossos corações intuíam. Aprendemos dos mestres gregos que o belo e o bom (καλός και αγαθός) são reflexo um do outro e, mesmo de olhos postos na crueza de uma cruz que não nos deixa embandeirar em triunfalismos, quisemos, ainda assim, prestar testemunho dessa eternidade que espreita entre as malhas do tempo e dessa beleza que não é incruenta, mas é redentora.

Claro que a Europa, hoje, em 2024, se transformou num caldo de culturas bastante mais complexo. Recebemos muita gente, vinda de muitas proveniências, e a nossa própria certeza acerca de quem somos parece esbater-se na névoa da pós-modernidade. O falecido Roger Scruton notava com grande argúcia que não há nenhuma área realmente importante para a vida humana que não tenha, nas universidades europeias, algum curso apostado em desconstruí-la. Em muitos lugares da Europa, retirámos os crucifixos das salas de aula e os presépios das nossas praças, reprovamos as procissões e as exibições públicas da fé, transformamos igrejas em livrarias, apartamentos de luxo e discotecas, e fingimos, para efeitos de representatividade pública, que todas as religiões têm o mesmo peso social. Parece-nos bem a prática religiosa, desde que individualizada e remetida, ou à privacidade dos templos, ou ao segredo das consciências. Às vezes, achamos mesmo que a convivência com as outras culturas fica mais fácil e mais justa quando tornamos tudo neutral, asséptico, desprovido de qualquer carga religiosa. Esta abordagem, porém, tem vários problemas. Um deles é que não nos é possível, por muito que o tentemos, ocultar quem somos. A sombra do passado surpreende sempre os mais incautos e espreita por entre as frestas das mais improváveis paredes. Segundo, como explica o filósofo Pierre Manent em Beyond Radical Secularism (2016), a neutralidade, às vezes, neutraliza-nos. Seria muito mais fácil receber um muçulmano com a sua identidade muçulmana, e integrá-lo numa sociedade com uma identidade definida sem complexos do que, para assegurar a integração, forçar o muçulmano a despir-se dos seus particularismos identitários e tratá-lo unicamente como um cidadão abstracto, no meio de cidadãos abstractos, todos eles anonimizados e massificados.

O sistema liberal em que vivemos só concede direito de cidadania ao indivíduo e à grande Humanidade. Lida mal com o particularismo, com os corpos intermédios, com a nação, com o bairro, com a terra, com o sotaque, com o costume local, com o compasso pascal e a procissão de Corpo de Deus, os sinos a marcar as horas do dia e as figuras tradicionais de autoridade. Mas, às vezes, a pretensão da neutralidade desfigura-nos a identidade e impede-nos de reconhecer quem somos. Deste modo, podemos acabar como Peter Schlemihl, o protagonista do conto de Chamisso que, em troca de prosperidade e progresso, vende ao diabo a própria sombra e vem a tornar-se num homem inseguro, envergonhado e solitário, sem rasto e sem memória, para sempre desamparado.

Neste tempo de Páscoa, tempo de morte e de ressurreição, tempo de triunfo e de novos começos, faremos bem em cuidar da nossa sombra e em reencontrarmo-nos com as grandes verdades que forjaram a nossa civilização e que permanecem, hoje mesmo, tão vivas e eficazes como há dois mil anos. Quem não sabe de onde vem não pode saber onde está, nem, muito menos, para onde deve ir.