Tenho visto na televisão e lido nos jornais um certo número de individualidades, que se apresentam com indiscutíveis pergaminhos científicos, a defenderem uma curiosa teoria física: os constituintes últimos da matéria são os tremoços. Os átomos e a as partículas subatómicas são, aos seus olhos, ficções ideológicas destinadas a enriquecerem uma velha e faminta indústria sedenta de lucros desmesurados. Apoiam esta sua arrojada interpretação do mundo natural nas doutrinas expostas por certos físicos russos, detentores de obra extensa no capítulo.

A controvérsia tem sido aguerrida entre os partidários do tremocismo e os adeptos da teoria atómica. E, naturalmente, como acontece muitas vezes neste tipo de disputas, há quem apele à conciliação das doutrinas com vista ao que apelidam de “paz cognitiva”, um valor que prezam antes de tudo o mais. Ou melhor: quem sustente que é necessário dar mais voz ao tremocismo, já que ele representa uma visão indispensável para compreendermos a natureza em toda a sua complexidade. Quem toma o partido da física atómica adopta, aos olhos dos conciliadores, uma atitude persecutória, típica dos famigerados “vigilantes”, face a quem ousa pensar a realidade na sua dimensão mais profunda. É necessária, dizem-nos, uma epistemologia diversa da epistemologia dominante, um “corte epistemológico” com o passado, uma “mudança de paradigma”.

Velhas noções como as de causa e efeito, por exemplo, devem ser inteiramente revistas à luz do novo paradigma tremocista. Se um tremoço choca com outro tremoço, a epistemologia dominante atribui a actividade ao primeiro e a passividade ao segundo. Puro logro. É evidentemente o contrário que se passa. É o segundo tremoço, aquele que aparentemente sofre a acção do primeiro, que é o verdadeiro agente. A epistemologia tremocista pratica aquilo que, nos anos sessenta e setenta do século passado, se chamava a “filosofia da suspeita”. Na sua presente aplicação, ela faz-nos ver que a inocência do segundo tremoço é, na verdade, uma forma de acção insidiosa sobre o primeiro tremoço, que não faz mais do que reagir a uma provocação do segundo.

O novo paradigma goza de uma grande popularidade que não se limita de modo algum aos seus teóricos mais subtis. As deficiências das doutrinas mais correntes da causalidade sempre pareceram óbvias a um vasto número de espíritos que eram espontaneamente tremocistas sem disso terem plena consciência. No fundo, sempre acreditaram que os tremoços não são constituídos por átomos e que é exactamente o contrário que se verifica. Para eles, a física atómica é uma construção conspiratória fundada no recalcamento do carácter elementar dos tremoços, recalcamento esse que se deve a uma rede de influências que secretamente promove a ilusão da existência das partículas atómicas.

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As aparências, os fenómenos, nunca enganaram os tremocistas subtis nem os tremocistas espontâneos. Não por cepticismo, note-se. O cepticismo é um princípio activo de investigação que nos aconselha a prolongar o inquérito, a ir mais longe. A filosofia que subjaz ao tremocismo é de natureza distinta. Se os tremocistas duvidam dos fenómenos que visivelmente lhes aparecem, é porque estão firmemente convencidos, à partida, de que a verdade é o exacto contrário daquilo que o mundo fenomenal lhes mostra. No tremocismo subtil, esta inversão da ordem das coisas conta com o apoio de elaborações teóricas sofisticadas. No tremocismo espontâneo, ela provém unicamente da convicção de que a opinião comum é por definição errada e mistificatória, e isso basta como critério de verdade negativo para justificar a justeza da sua própria posição.

Mas, quaisquer que sejam as diferenças entre tremocistas subtis e tremocistas espontâneos, há um fundo comum partilhado por ambos: a realidade não é o que parece, a física atómica é um embuste sistematicamente promovido por interesses obscuros que a servil comunicação social acarinha com desvelo. Há, de resto, inúmeros casos em que aqueles que se apresentam como tremocistas subtis não passam de tremocistas espontâneos que adoptam, melhor ou pior, a linguagem dos primeiros. Do mesmo modo, note-se, que muitos tremocistas espontâneos são, no fundo, tremocistas subtis que se recusam passar pela mediação teórica, que julgam demasiado intelectual, dos artifícios pouco viris do tremocismo doutrinal. Basta dizer: por mim, só existem tremoços.

Aparentemente, o ónus da prova, um elemento importante nas controvérsias científicas, deveria caber aos físicos tremocistas. Apesar de tudo, são eles que defendem a posição mais contra-intuitiva, entre outras coisas porque sustentam uma inversão das relações causais tal como o entendimento comum as concebe (ver o que disse atrás sobre a “filosofia da suspeita”). Mas eles possuem um argumento que julgam poderoso para se furtarem a essa incumbência: o argumento do interesse. É que, para eles, os sectários da física atómica são movidos, desde o princípio, pelos interesses de uma indústria que busca lucros a qualquer custo, em todos os tempos e lugares, como, explicam-nos, é bem sabido por quem se encontre devidamente informado. E, se assim é, qual a necessidade de provar, com o auxílio de demonstrações e experiências, o que quer que seja? A hipótese tremocista da natureza da matéria é mais do que uma mera hipótese – é uma verdade que não requer prova alguma. A sua luminosidade é amplamente exibida pelo simples contraste com as trevas residentes no sórdido mundo dos interesses.

São estes os aspectos mais relevantes da controvérsia em curso no que respeita à natureza da matéria. Por mim, que sou partidário da física atómica, confesso que ouço com disciplina científica aqueles que sustentam serem os tremoços os constituintes últimos da matéria, como, a bem do progresso da ciência, igualmente defenderia o direito à expressão daqueles que sustentassem que tão nobre estatuto caberia aos pistáchios – a física pistachista parece tão digna como a tremocista – ou aos amendoins. É verdade que me parece insustentável falar, a este propósito, da necessidade de uma nova epistemologia, de uma “mudança de paradigma”, da paz cognitiva como um valor absoluto e incondicional, do tremocismo como algo de indispensável para capturar a complexidade do reino natural, e por aí adiante. E não creio, sinceramente, que a inversão das relações causais defendida pelos físicos tremocistas, bem como as doutrinas conspiratórias, subtis ou espontâneas, sejam posições verosímeis, tal como julgo ser absurda a recusa da incumbência do ónus da prova pelo argumento dos interesses que supostamente permeiam as opiniões alheias. Mas a última coisa que me passaria pela cabeça seria procurar silenciar estas curiosas contribuições para o debate em torno da verdade. O amor da investigação deve estar em primeiro lugar. E as vozes que, de Vladivostok a Lisboa, defendem serem os tremoços os constituintes últimos da matéria devem poder ser ouvidas por todos. Sem que se argumente, ao estilo que eles usam para denegrir os partidários da teoria atómica, que se encontram ao serviço dos fabricantes de cerveja.