Corria o ano de 2007 e Michelle Bachelet, na altura Presidente do Chile, serviu de anfitriã à XVII Cimeira Ibero-Americana. Ninguém faltou à chamada. Lula da Silva, Néstor Kirchner, Cavaco Silva, José Sócrates, Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, Zapatero, Juan Carlos I.

Apesar de já ninguém se lembrar de nada do que foi acordado nessa cimeira de 2007 – como aliás de nenhuma destas reuniões – é díficil esquecer o mítico “¿por qué no te callas?” de Juan Carlos I a Hugo Chávez. (Em restrospectiva: enquanto Zapatero, na altura Presidente do Governo Espanhol, falava, Hugo Chávez apelidou José María Aznar de “fascista”. Zapatero pediu respeito e Hugo Chávez, qual surdo político, voltou a interromper. Segue-se o ponto de ordem do “¿por qué no te callas?” de Juan Carlos I).

Ora, o “¿por qué no te callas?”, qual grito de decência perante a grosseira falta de respeito de Hugo Chávez – afinal, o Presidente da Venezuela tinha acabado de acusar um ex-Presidente do Governo Espanhol democraticamente eleito e re-eleito de “fascista” – marcou um tempo em que as democracias liberais não viviam amedrontadas nem se sentiam ameaçadas pelo cancelamento digital nem pelas revoluções de iPhone na mão.

Volvidos 15 anos, surgiu uma nova polémica – como alguns querem fazer querer – entre o Chefe de Estado Espanhol, o Rei Felipe VI, e um outro país latino-americano. A Colômbia.

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No passado Domingo, dia da bandeira colombiana, tomou posse o novo Presidente do país, Gustavo Petro. O primeiro de esquerda desde a Constituição de 1991. Durante as cerimónias assistiu-se a um momento caricato e fora do guião protocolar previamente distribuído aos convidados presentes: quatro homens da guarda presidencial atravessaram o palco com a espada de Simón Bolívar, “El Libertador”. Nesse momento, e perante a multidão que gritava “alerta, alerta, alerta que camina la espada de Bolívar por América Latina” todos os convidados se apressaram a levantar. Todos, excepto um: o Rei Felipe VI.

A história da espada é longa, e inclui o roubo da mesma (1974) pela guerrilha urbana “M-19”, da qual fez parte o actual Presidente, Gustavo Petro. Assim, e como notou o Editorial do El Mundo, “Hizo bien Felipe VI al no honrar un símbolo que causa profunda división entre los colombianos (…) El Rey (…) actuó con la prudencia de quien tiene interiorizado el carácter institucional de su presencia como representante del Estado español, obligado – por tanto – a expresarse en gestos y palabras con la más cuidada neutralidad. Su decisión de permanecer sentado ante el sable de Simón Bolívar evidencia su profundo conocimiento de la Historia de los distintos procesos de descolonización de los países de América Latina, con sus luces y sus sombras. Su actitud ejemplifica la prevalencia de la institucionalidad del acto frente al espectáculo populista y segregador pretendido por Petro y devenido, en cierta medida, en un homenaje a la guerrilla en la que militó”.

Apesar do eco em Espanha, o gesto do Chefe de Estado Espanhol não teve qualquer espaço no El Tiempo, no El Espectador nem noutros títulos da imprensa colombiana e/ou latino-americana. Criou no entanto mais uma polémica e um atrito entre o PSOE e o Podemos, com os primeiros a desvalorizarem a atitude de Felipe VI, e os últimos a pedirem “orden” e “una buena guillotina” para o Rei. Surpreendente de facto. Até esta semana, estava convencido que o Podemos era um partido anti-establishment, e que o protocolo de Estado não era mais do que uma manifestação da caduca ordem burguesa (e, no caso de Espanha, também, ordem monárquica). Estava obviamente enganado, e admito que o poder tenha domesticado alguns dos tiques revolucionários do partido fundado por Pablo Iglesias. Ora, o problema da tese do Podemos, é que o desfile da espada do Libertador não passou de um capricho populista (e de última hora) de Gustavo Petro, não sendo sequer um símbolo oficial da Colômbia, como a bandeira, o hino ou o escudo. Daí que não se perceba o afrontamento dos morados. Afinal, o Rei seguiu à risca o protocolo de Estado.

Devo portanto concluir que estamos perante um faits divers de Agosto criado pelo Podemos para entreter jornalistas e comentadores que não estão de férias. Mas, como a bondade nunca vem só, não faltaram as acusações de ressentimento e de neo-colonialismo tardio por parte do Rei Felipe VI. Nada de novo portanto.

Contextualizado o episódio, impõem-se as perguntas: o que aconteceu para em 15 anos passarmos do “¿por qué no te callas?” à guilhotina de 1738? Que suposto progressismo é este que nos faz recuar 300 anos?

As explicações são várias. No entanto, há duas coisas que sabemos: há 15 anos o Podemos ainda não existia e as redes sociais estavam longe de ter a cobertura de users que têm hoje. No caso do Podemos, importa destacar a frescura que trouxe à política espanhola, e que varia entre o ressentimento, o tribalismo, a híper sensibilidade, a infantilidade do discurso, e depois uns quantos bonecos mediáticos que têm uma atenção inversamente proporcional à sua representação democrática. Já no caso das redes sociais, são apenas o ecoponto amplificado das mensagens simples e simplificadas dos agentes políticos do Podemos (e do Vox, mas isso deixo para outra crónica).

Em 15 anos passámos da razão à infantilização da política. Da civilização à tribalização da vida democrática. Há uns meses, o Jorge Marrão e o Joaquim Aguiar convidaram o Paulo Portas para abrir o Conversas Visíveis do Negócios. Nessa conversa, Paulo Portas questiona se a transición espanhola de 1975, e que colocou do mesmo lado Adolfo Suárez, Felipe González, Santiago Carillo, entre outros, teria sido possível, sem uma nova guerra civil, no actual ambiente digital. Paulo Portas admite que não. Temo que tenha razão.

Os tempos são outros, e não estão para os radicais moderados. Infelizmente. Resta saber se as democracias liberais do pós-guerra terão capacidade e resiliência – como se diz hoje em dia – para sobreviver às novas realidades.