Henrique Neto. António Sampaio da Nóvoa. O primeiro já foi deputado eleito pelo PS. O segundo foi sempre “independente”. A candidatura presidencial do primeiro é “indiferente” a António Costa, pois foi esta a sua única reacção, agreste e porventura pouco educada. Já a candidatura presidencial do segundo fica, no que ao PS toca, à espera de melhores dias. Mas já não será “indiferente”.
Confesso que tenho uma dificuldade de partida para falar destes dois homens que serão os primeiros candidatos a colocar-se no terreno tendo em vista as próximas eleições presidenciais: conheço pessoalmente Henrique Neto, Sampaio da Nóvoa só o vi em ocasiões mais ou menos institucionais.
No tempo da Internet isto não devia ser uma dificuldade de maior. Estará lá tudo, à distância de um clique. Mas não está. Houve mesmo alguns mistérios que não consegui esclarecer.
Um deles foi por que razão iniciou Sampaio da Nóvoa o seu discurso no recente “Congresso da Cidadania” afirmando, e cito, que “devo a Abril tudo o que sou”. Tendo nascido em 1954, quando chegou a revolução estava nos 20 anos (e não nos 18, como refere em mais do que uma entrevista), e já estudava História. Não consegui encontrar qualquer referência a problemas com a polícia política e, sendo filho de um juiz e descendente de uma “família nobre”, com quintas, podia viver de forma austera mas não deixaria por certo de estudar por dificuldades económicas. Depois andou a fazer os seus doutoramentos (tem dois), passou muitos anos em universidades estrangeiras, e nunca foi, até se tornar reitor da Universidade de Lisboa (e, mais tarde, de discursar num 10 de Junho), um intelectual público presente nos debates nacionais. Ou seja, fiquei com a impressão de que só tinha dito que devia tudo “a Abril” para cair bem – e não há discurso que faça que, por assim dizer, não se destine a “cair bem”.
Fui relê-los. O exercício foi um pouco penoso, pois são pouco variados. Mas tinha de saber se lá estava a “visão para o país” com que tanta gente se diz identificar. Vou ser claro e sincero: não há nessas peças oratórias algo que, mesmo vagamente, se aproxime a uma visão para Portugal. Nem nelas, nem nas muitas entrevistas que também andei a ler ou a reler. Há apenas duas coisas: uma retórica cuidada mas vazia, e a repetição de que o nosso problema é a falta de investimento na educação (e, vá lá, a ligação entre a universidade e a sociedade). Pouco mais se consegue espremer.
Quanto aos truques retóricos, eles chegam a cansar. No famoso e tão elogiado discurso do 10 de Junho de 2012, por exemplo, citou nada menos de oito autores: José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Manuel Laranjeira, Teixeira de Pascoaes, Alberto Sampaio, Antero de Quental, José Afonso e Sophia de Mello Breyner. O resto é sabido e cai sempre bem: falar muitas vezes do futuro, alardear consciência social, usar expressões como “ser alguém”, desejar que fosse “como em Abril”, invocar a “força dos cidadãos”, acrescentar que “a língua é o nosso mundo”, que o “mar português”, mas que “a Europa é a nossa casa” (não esta Europa, claro está).
É um académico, um ex-reitor, e isso em si é merecedor de respeito, mesmo não sendo eu grande cultor da sua especialidade, a das chamadas ciências da Educação. Tratei pois de procurar na sua obra mais algumas chaves para o compreender, andei pelo repositório da Universidade de Lisboa, mas também isso não me ajudou muito, nem sequer pude confirmar a ideia de que é uma referência internacional na sua área de estudos, como vi escrito em alguns lugares.
Vou ainda mais longe. Vi muita gente colocá-lo à esquerda do PS, uma espécie de radical de venerandas barbas brancas, mas nem isso encontrei ao ler os seus discursos. Claro que a retórica gongórica cria uma imagem radical e levanta as plateias, mas isso é pouco e mais latino-americano do que propriamente de esquerda. Essa parte é mesmo algo assustadora: não entendo como há tanta gente com vontade de dar uma carta-branca a alguém que não sabemos o que realmente pensa apenas porque nos inebria com discursos que, lidos e relidos, estão sobretudo cheios de lugares comuns.
Dificilmente encontraríamos alguém mais diferente de Sampaio da Nóvoa do que Henrique Neto. Em vez de descender de nobres, nasceu numa família operária. Aos 14 anos já era aprendiz numa fábrica, e naturalmente nunca se doutorou. Em vez disso fez-se industrial, criou empresas e postos de trabalho. E foi sempre curioso autodidata. Antes 25 de Abril, quando era perigoso ser da oposição, ele foi da única oposição que existia na Marinha Grande, o Partido Comunista, e por isso chegou a estar preso. Quando passou a ser fácil ser comunista, afastou-se. Mais tarde foi deputado socialista, mas quando o partido se dobrou à vontade de um só homem, José Sócrates, ele foi dos raríssimos que se distanciou e, com frontalidade, o denunciou e denunciou as suas políticas.
A sua retórica não é sofisticada, mas é afiada. As suas palavras vão directas aos alvos, até porque não tem dependências, a não ser as daquilo que é e que pensa. Não tendo repositório académico, tem um pequeno livro onde nos explica o que pensa para o país – Uma Estratégia para Portugal. Há lá muito mais ideias e muito mais “visão” do que em todos os discursos de Sampaio da Nóvoa.
Há quem o veja à direita do PS, apesar de ter vindo da esquerda, e desta vez são capazes de ter razão. Não porque tenha deixado de se preocupar com as pessoas e os mais fracos, mas porque conheceu o suficiente da vida para ter os pés no chão, para saber que existe uma coisa chamada realidade e que a política não é apenas sonho, é sobretudo a arte do possível. Não lhe encontrei, talvez por isso, nenhuma entrevista em que tivesse usado a palavra utopia – uma daqueles que também faz parte do léxico recorrente de Nóvoa.
E mesmo sendo eu parcial – tenho imenso respeito por percursos de vida como o de Henrique Neto, mesmo podendo discordar de muitas das suas ideias e propostas – a verdade é que, verdadeiramente, não estamos perante dois candidatos de corpo inteiro. O que temos pela frente é algo diferente. De um lado, alguém que sabe que está sozinho mas tem coisas interessantes a dizer ao país, mesmo sabendo que muitas das suas ideias não serão as mais populares. Do outro lado, alguém que se sabe acompanhado mas pouco tem a dizer ao país. Com uma agravante: julga que tem.
Já se viu que um não terá o apoio do PS, nem de uma direita onde abundam os proto-candidatos. Ainda não se viu se o outro, quando chegar a altura, não terá António Costa a seu lado – ele mais os da Aula Magna, que vão da esquerda do PS até às margens do Bloco. O que lhe dá, para já, uma enorme vantagem.
Por isso não nos pode ser indiferente a candidatura de Sampaio da Nóvoa, que todos dão por certa. Por isso temos de dar atenção a um discurso, que parecendo grandioso, é no fundo pouco mais do que um discurso que, explorando o filão da indignação, lhe acrescenta um mundo de vacuidades e fica à espera do aplauso entusiasmado das redes sociais.
O que faria um Nóvoa em Belém? Que caminho seguiria um Nóvoa que é capaz de dizer “sou como o Jorge Luís Borges, imagino que o paraíso é uma enorme biblioteca de livros” na mesma entrevista onde informa que, desde que se tornara reitor, havia quatro anos, “a única pergunta com que durmo é: ‘Será que estou a fazer o melhor possível para o bem da universidade?’”. Ficaria com os seus livros ou acabaria a tentar interferir com o desempenho do primeiro-ministro, “a bem da Nação”?
É que as palavras podem inebriar, sobretudo na luta política, sobretudo em tempos de crise e sofrimento, sobretudo quando vemos muitos eleitores a deixarem-se tentar por retóricas que julgávamos serem mais coisa da América Latina. Há cinco anos vimos como um independente sem quaisquer apoios, mas também ele com um discurso tão envolvente como vazio – Fernando Nobre –, conseguiu ultrapassar os 14%.
A candidatura de Sampaio da Nóvoa não pode ser por isso indiferente, mesmo que alguns profissionais da política tendam a desvalorizá-la. Sobretudo se pensarmos no exigente que vai ser o próximo mandato presidencial.
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