Antes de ver o filme Os Dois Papas, do realizador Fernando Meirelles, já tinha ouvido e lido opiniões muito díspares a seu respeito. Li críticas severas à forma como o filme retrata o Papa emérito Bento XVI. Mas também ouvi quem dissesse que, no filme, as figuras dos dois Papas não são contrapostas, mas apresentadas como complementares, e que Bento XVI sai enaltecido pelas supremas inteligência e lucidez de reconhecer as suas limitações e a necessidade de mudança reclamada pela época histórica que vivemos. O filme contribuiria para que muitas pessoas afastadas da Igreja Católica dela se aproximem (como parece suceder com o próprio realizador).

É verdade que do filme ressalta o fascínio pela coerência evangélica de Jorge Bergoglio (hoje, Papa Francisco), pela sua simplicidade, pela sua proximidade em relação às pessoas que sofrem, pela sua dedicação aos pobres, pela sua fé autêntica em Deus e na sua misericórdia. Não é um homem perfeito, cometeu erros, mas sabe reconhecer esses erros e deles se arrepende.

Compreendo que este retrato de Jorge Bergoglio seja visto por muitos como um testemunho de autenticidade evangélica que pode aproximar muitas pessoas da Igreja.

Mas em contraste com essa visão, quase hagiográfica, do Papa Francisco, onde se nota uma preocupação de fidelidade à verdade histórica (apesar dos muitos episódios ficcionados), devo dizer que o retrato de Bento XVI me parece uma caricatura grosseira. É apresentado como uma pessoa algo arrogante e de vistas curtas; que não saúda o cardeal Bergoglio no conclave que a ele elegeu, por ser seu opositor; que se sente criticado apenas porque este adota um estilo de vida mais simples do que se supõe ser o seu; que não acompanha o seu hóspede durante o jantar; e que até (em certo momento) parece ter uma fé mais débil. Nessa caricatura não se reconhece a pessoa humilde e delicada que todos, de uma ou de outra forma. conhecem; o teólogo e intelectual brilhante, profundo e rigoroso, o autor de textos como os das encíclicas Deus Caritas Est (Deus é Amor) e Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade), cujos títulos, por si só, dizem bem daquilo que pensa e aquilo em que acredita. Uma caricatura que será a do “rottweiler de Deus” (como era depreciativamente designado por alguns dos que o criticavam), mas não um retrato fiel de Bento XVI.

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Contra a verdade histórica é a insinuação de que o Papa emérito seria culpado do encobrimento de sacerdotes responsáveis por abusos sexuais. Foi ele quem, pelo contrário, quis abandonar completamente esse encobrimento, sancionando muitos desses responsáveis, incluindo o caso mais escandaloso do Padre Maciel (que é referido no filme como tendo sido por ele protegido).

É verdade que essa visão negativa que o filme apresenta vai evoluindo e a figura de Bento XVI se torna digna de admiração quando ele também sabe reconhecer humildemente as suas limitações, demonstra total desapego ao poder e, pelo bem da Igreja, acaba por incentivar o seu suposto rival e inimigo a substitui-lo na sua missão, Mas a leitura que deste aspeto pode ser feita será a de que o maior mérito de Bento XVI seria, não a sua ação e o seu ensinamento, mas a sua renúncia. O que me parece, no mínimo, muito redutor.

Outra faceta do filme que me desagradou foi a de colocar os dois Papas em polos opostos, acentuando as suas diferenças como se estivéssemos perante dois chefes de fações ou partidos diferentes.

Não me refiro às diferenças de temperamento ou personalidade, que são evidentes, mas não fazem perigar, minimamente, a unidade da Igreja: uma pessoa (Bento XVI) tímida e mais dedicada ao estudo e à reflexão, outra (Francisco) mais exuberante, empática, e próxima da vida concreta das pessoas de hoje.

Refiro-me a diferenças no plano doutrinal. Há hoje quem acentue essas diferenças, uns que foram, e são, críticos de Bento XVI (e de São João Paulo II) e querem agora dessa forma apoiar e enaltecer a ação e o ensinamento do Papa Francisco; outros que se identificaram com os dois Papas anteriores e criticam hoje (por vezes, severamente) o Papa Francisco por este deles supostamente divergir. O filme também acentua essas diferenças, neste caso para enaltecer o Papa Francisco. Nele se ouve a personagem de Bento XVI dizer que o cardeal Bergoglio era o seu maior crítico (o que não corresponde minimamente à verdade) e que ele não concordava em nada com as ideias deste, que aí são apresentadas de um modo muito simplista e superficial.

Ora, a doutrina da Igreja pode, e deve, ser desenvolvida, mas no sentido de um aprofundamento ou enriquecimento numa linha de continuidade, não como uma evolução assente em ruturas ou contradições dialéticas. Essa doutrina não é criação humana, não está, por isso, sujeita ao sempre precário espírito do tempo (Disse Jesus: «O céu e terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar» – Mt 24,35). O que pode mudar é a forma de exprimir essa doutrina de modo mais compreensível nas várias épocas. Os diálogos entre os dois Papas sobre o sentido da mudança na Igreja que do filme constam são algo ambíguos a este respeito.

Por isso, a sucessão de Papas não pode ser equiparada a uma qualquer alternância partidária, em que os programas e orientações do novo governo podem divergir em absoluto dos de um governo anterior. Não há uma “igreja de Bento XVI” e uma “igreja do Papa Francisco”.

É verdade que as cenas finais em que os dois Papas comem juntos uma pizza e dançam juntos o tango podem simbolizar uma reconciliação e uma complementaridade. Mas também podem significar uma transição pacífica, que a uma época se sucede outra e que o ensinamento de Bento XVI (tal como o de São João Paulo II) já pertence ao passado, já não vale para os dias de hoje e pode ser arquivado. Nas cenas relativas à eleição do Papa Francisco, ouve-se um jornalista dizer que está em causa «uma encruzilhada entre o velho e o novo».

Esta contraposição entre os dois Papas, que o filme acentua, pode ferir a unidade da Igreja católica e dar dela uma imagem distorcida. É de louvar que este filme aproxime as pessoas da Igreja, mas não deveria dela dar uma imagem distorcida. O Papa Francisco quer aproximar as pessoas da Igreja, não certamente apenas da sua pessoa.