(Texto lido na aceitação da 34ª edição dos prémios Dona Antónia, Prémio Consagração.)
1 Começar estas breves palavras por apenas manifestar a minha imensa gratidão, nunca chegaria. E no meu caso, não seria sequer possível. O meu agradecimento terá hoje de fazer um triplo salto para acolher os três grandes obrigados que faço absoluta questão de aqui deixar.
O primeiro é obviamente o ter sido eleita para o prémio “Dona Antónia Ferreira”. Ver o meu trabalho distinguido por um júri presidido por Artur Santos Silva de tão reconhecida e pública qualidade é uma sensação talvez difícil de transmitir. A alegria que produz, além de grande, é particular, quase íntima; e o orgulho pessoal de quem começou aos 17 anos na televisão nos idos de sessenta do século passado e agora aqui está, é quase intimidante de exprimir.
O segundo obrigado é ter esta distinção um nome feminino e que nome Santo Deus! Dona Antónia Adelaide Ferreira concentra na sua formidável e raríssima personalidade tudo o que admiro, enalteço e tento que me inspire. A tenacidade, a bravura, a capacidade de trabalho; o empresariado avant la letre; o nunca ter consentido que as adversidades que conheceu se transformassem em irremediabilidades; a resiliência face á solidão que terá certamente experimentado ao longo de longa e árdua caminhada; a permanente generosidade: D. Antónia, a adorada Ferreirinha que a todos atendia, foi uma benemérita. Uma grande portuguesa enfim: nunca desistiu, não recuou, não abandonou, não temeu. Pisou forte um chão de pedras e dizendo nada às intempéries deixou incomparável legado que a Sogrape cuida e amplia com tanto de honra quanto de saber. Que me poderia então satisfazer mais do que ser profissionalmente distinguida com o nome de alguém que concretizou obra tão ambiciosa no Douro vinhateiro e deixou tão impressiva assinatura na vida? Na vida e na história deste desinquieto rio.
Saúdo agora directamente D. Antónia Adelaide Ferreira, da Terra para o Céu. A fé que pratico não é de todo incompatível com ter a firme certeza de que neste preciso momento ela está sentada numa frisa de boca no Paraíso, a testemunhar a minha alegria por um prémio que leva o seu nome. Oxalá não ache que eu destoe…
O último obrigado tem o nome da água que vejo correndo diante desta Quinta do Porto. Talvez não haja muita gente que saiba da nossa paixão, -do Francisco e minha – por esta morada encantatória, espelhada em águas que ora nos surpreendem pela mansidão ora nos afligem de tormenta. Já as vou conhecendo.
Tao grande foi esse deslumbramento que alugámos casa à beira do Douro por quatro vezes; convencemos amigos a alugarem eles próprios casas para onde também vínhamos; descobrimos hotéis e pousadas de sonho, visitamos quintas, trepamos socalcos, perdemo-nos por lugares de incomparável esplendor, cruzamos vezes infindas este espelho liquido, ora a braços ora de barco. E o primeiro poiso para onde saímos após os confinamentos, foi a Quinta do Valado, na Régua. Deixei intencionalmente para o fim deste último obrigado – os últimos serão os primeiros – o meu tributo ao admirável e saudoso Fernando Guedes que aqui muito viveu e muito labutou com a felicidade que se sabe.
Contei-lhes enfim a história de uma descoberta que desaguou numa relação de amor. Ora receber um prémio justamente nascido destas vinhas, e impresso nesta paisagem foi surpresa maravilhosa, de tão “encaixada” comigo. Melhor teria sido impossível. Percebem agora certamente que nunca poderiam ter sido outros os meus três obrigados.
2 Comecei esta vida de roda das palavras, frente a uma câmara de televisão falando sobre Florbela Espanca no Programa Juvenil de Ivette Centeno. Na RTP. Eram meus companheiros Júlio Isidro, Paulo Ramalho, e o meu saudosíssimo João Lobo Antunes, então um lindo estudante de Medicina. As emissões eram em directo, nada se podia emendar, não nos podíamos enganar, nem encostar aos cenários que por vezes abanavam, periclitantemente: a emissão era seguida, tudo tinha que correr bem. E corria.
Seguiram-se jornaizinhos artesanais, a Rádio Renascença, mais programas de televisão. E um dia, era eu novinha, houve algo que foi quase um pré-aviso do que poderia vir a ocorrer: obtive duas entrevistas com cantoras francesas que estando na moda nesses anos sessenta, tinham vindo cantar e encantar a plateia do lisboeta Teatro Monumental. Silvie Vartan e Françoise Hardy.
Seguiram-se outras coisas, muita coisas, nos jornais, rádio, écrans. Mas seguiu-se sobretudo a vida. A vida, a constituição da minha família, os cinco filhos que foram nascendo, viagens, o culto dos amigos e sempre, sempre o jornalismo. E também sempre essa tentativa -muitas vezes certamente gorada – de estar a travar o “bom combate”. Com vontade, curiosidade, energia, entusiasmo. As mesmíssimas coordenadas que até hoje não deixei de usar.
O 25 de Abril e o Expresso catapultaram-me para o jornalismo político: não houve quartel onde a direcção do jornal não me mandasse, militar que não tenha conhecido, sedes partidárias onde não tenha quase vivido. A confissão será desconcertante mas uma das mais extraordinárias épocas que testemunhei foi indiscutivelmente a incandescente vivência do processo revolucionário em curso: o país ardia e o nós corríamos à frente do incêndio, imprimindo-o depois em letra de imprensa, sob todos os seus mais díspares ângulos e ouvindo os seus irracionais sub-protagonistas. O único protagonista principal, racional e nacional era um e chamava-se Mário Soares.
Apagado o PREC era preciso contar o Portugal que titubeantemente saía de feroz ameaça comunista. Foi o que me fartei de fazer. Era preciso usar as palavras para isso mesmo. Separação de águas, clarificação das coisas. De um lado o trigo, do outro o joio. O trabalho fez-me crescer, aprender, amadurecer, descobrir, viajar. Entrevistei grandes políticos e intelectuais nacionais e internacionais, privei com homens e mulheres muito dotados, admirei gente com alto sentido de serviço publico, conheci patriotas verdadeiros. Lidei enfim de perto e ao vivo com o Portugal da política, da economia, da cultura, da academia, da administração. Da Igreja. Em 1976 – nunca o esquecerei – vi o melhor do país sentado no hemiciclo de S. Bento. Eram os primeiros deputados do novo Estado de Direito que nascia aos tropeções mas hoje – pequeno desabafo melancólico – o melhor já lá não se senta. Nem serve um país que empalidece, esmorece e envelhece.
Em tudo isto e tal como na vida, houve marés altas e marés baixas mas o que vivi -em casa e na família – sempre fomos uma tribo – na profissão ou com os amigos, foi um privilégio, uma escola, uma lição de vida.
Os nossos filhos nasceram politizados, aprendendo à nascença a saudar Mário Soares ou algum militar quando eles entravam para jantar e mais tarde Sá Carneiro, Jorge Sampaio, Cavaco Silva, António Costa, Passos Coelho. Os filhos achavam natural a roda viva de jornalistas estrangeiros que lá aterravam, consideravam verosímil o nível dos decibéis que a casa produzia, nunca estranharam ver a mãe a trabalhar tanto como o Pai.
Da mesma forma o Francisco e eu nunca esqueceremos o olhar da nossa filha mais velha, então com 12 anos, a descer a escada da casa a correr ao nosso encontro, “morreu o Sá Carneiro, avião caiu…” A Verónica já sabia muito bem quem era Francisco Sá Carneiro e o que ele representava.
3 Passaram-se muitos anos, mil anos e ao mesmo tempo nenhum ano, estranha impressão: foi tudo ontem, de tudo me lembro e de grande parte do “tudo”, dei conta em alguns dos livros que fui publicando. Oxalá possam vir outros livros, mais livros.
Fiz o que pude? Talvez, não se sabe. Mas uma coisa me alegraria muitíssimo hoje: ter-se percebido que nestas décadas de trabalho ininterrupto usei tanto de entusiasmo quanto de decência. O que é outra forma de dizer que tentei travar o bom combate.