À Rosana

1 Morreste-me. Assim dito parece uma coisa meia dramática, meia piegas mas não é senão isto. Partiste. Tu acharás que foste para parte incerta, eu sei que não e que até me estás a ouvir, mas o que me entristece até ao fundo do coração é que naquele meu pequeno reduto de amigos onde antecipo que a cumplicidade será instantânea ou que as coisas se resolvem com um olhar ou uma meia palavra, já são hoje mais os mortos que os vivos . E, agora, tu. A minha vida, pura e simplesmente, nunca será desligável profissionalmente (nem humanamente) da tua e por isso levaste contigo um bocadinho de mim, tanto – mas tanto – foi o que vivemos juntos.

Primeiro no Expresso, depois no Público, que o mesmo é falar numa considerabilísssima parte do melhor jornalismo que se fez — que tu fizeste — no país. Ah, quantas coisas, histórias, vida: descobertas, inovação, emoção, amores, desamores, tensões, zaragatas que por vezes deslizavam para tremendas — ou mesmo fatais — zangas; somas de egos, maus feitios, talento a rodos, sintonias, dessintonias. Tudo isto sempre tão inspirado quanto assente na tua aguda perspicácia, no risco que tratavas por tu, nessa criatividade que era a tua assinatura e da qual fui — sorte minha — uma atentíssima e vivíssima “testemunha-praticante” (não me ocorre melhor expressão).

E na liberdade, claro está. Primeiro mandamento: liberdade de pensar, dizer, escrever, discutir, discordar. Aprendi e ganhei por estar profissionalmente ao teu lado (muitas vezes discordando, mas que importância?), tão gloriosos foram esses teus (e também um bocadinho nossos) anos oitenta (1981/89) quando dirigias a Revista do Expresso. E que bem a “bolavas”, tão bem que julgo que nunca mais voltou a ter a mesma cintilação: tudo por ali passava — do novo ao diferente; tudo ali se descobria; tudo ali se discutia ou polemizava culturalmente, politicamente, civilizacionalmente.

Que anos de oiro, santo Deus, e nós tão novos… Era uma equipa, lembras-te? O Nuno Pacheco, o Augusto Seabra, o Miguel Esteves Cardoso, o António Mega, que, se a memória não me atraiçoa, idealizou contigo o primeiro número da tua era na Revista. Mais tarde o Zé Manuel Fernandes, o Vítor Malheiros, o Eduardo Prado Coelho, a Clara Ferreira Alves, o Alexandre Melo, o Espada (e temo ter esquecido alguém). E todo este produtivo e meio louco mundo supervisionado e atendido pela Teresa Schmidt, abelha mestra daquela redação sui generis. A curiosidade estava alerta, a ousadia sempre a bom nível, havia consciência e consistência. E havia chama, noitadas, boémia e homéricas discussões à mistura. (Devia ser uma espécie de “marca da casa”: já muito tempo antes, na década de setenta, o dr. Balsemão, coitado, que então nos “dirigia”, se fartava — sempre em vão — de avisar para o ar dos corredores que “aquilo não era o Scala de Milão”, quando confrontado com um conjunto “de prima donas caprichosas” que nunca aterravam na Rua Duque de Palmela antes do meio dia, quando ele, director do jornal, chegava bem antes disso a uma redação quase deserta.)

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A César, porém, o que é de César: se nada terá talvez igualado esses anos oitenta, muito do seu fulgor se deve à benção de Marcelo Rebelo Sousa, à época director do Expresso. O Marcelo desses anos merece evocação: previu, promoveu e amparou o caudal criativo de Vicente Jorge Silva e confiou na sua equipa. Nunca seria eu a esquecê-lo e tu, Vicente, sei que ainda menos.

2 Depois a saga continuou com a fundação do Público, onde voltaste a imprimir — ampliando-a — a tua qualidade: muito bom jornalismo, mas agora num registo diário, supremo desafio. Ganho, aliás. Também o testemunhei e nele participei: tantas reportagens, tantas entrevistas, tantas capas do Magazine por ti “sopradas” ou “encomendadas” que eu depois te dava a ler num alvoroço, antes de elas “saírem”, à espera de “aprovação” — e foi sempre assim. Com certeza que te recordas de como era definitivo para mim um sim ou um não teu… Devo-te, aliás, o melhor livro que fiz quando insististe que devia publicar em livro — devidamente ampliadas — uma série de longas entrevistas saídas no Público por ocasião do vigésimo aniversário de Abril de 74.

Dizer que tenho vontade de chorar é dizer pouco, ficará sempre dolorosamente aquém. Nada disto volta, nada será (ao menos) parecido, nem sei sequer se alguém disto se lembra: as memórias são traiçoeiras ou justiceiras, raramente amáveis e rarissimamente generosas. E a trezentos quilómetros de Lisboa tudo isto é ainda mais triste, se possível. Uma dor despida onde me falta o aconchego e as lágrimas dos nossos companheiros de viagem e de aventura.

3 Como tu bem sabes, e a Rosana também — e ainda hoje falávamos nisso as duas —, o legado que me deixas é muito maior do que teres sido um criativo, um catalisador, um fulgurante dinamizador de equipas, um óptimo director e um grande jornalista, um cineasta apaixonado. Falta a pedra essencial que foi fazendo de nós ao longo da vida muito mais que dois colegas. Falo de amizade, já percebeste. Antiga, antiga… Semeada quando ambos entrámos para o Expresso, em Setembro de 1974 (desculpa se me engano na data, mas acho que não), frutificada ao longo de anos em Lisboa ou no Funchal, e vicejante desde o início, mesmo que não nos víssemos a toda a hora e muito discordássemos politicamente. Mas, oh, como falávamos bem entre nós, como recordo os nossos jantares a quatro no “Riso” do Funchal, debruçado sobre o mar, ou a mania que tinhas de ir comer “bodião”, connosco, na parte antiga da cidade; a generosidade em nos emprestar a vossa casa na Madeira num verão dos anos noventa, para irmos de férias com os filhos, com o “pretexto” de que vocês “não precisavam dela pois iam para o Porto Santo”; os jantares no Campo Grande e os almoços no nosso “oeste”, a vozearia, o riso quase contínuo (nunca mais riremos os dois, nós que tínhamos o riso solto e a pender para o mesmo lado da observação); as tuas magníficas “imitações” e descrições que fazias, ao vivo e a cores, de tanta gente…; as discussões sem fim; uma genuína alegria a escorrer; e tu sempre, sempre, a encher a sala e a “ocupar” a conversa com uma originalíssima graça e essa tão peculiar personalidade que jamais me atreveria a definir. Nem é preciso: preciso é continuar a tentar fazer bom jornalismo e sobretudo a lembrar-te muitas vezes, evocar-te, falar de ti. Ressuscitar-te. Em Portugal morre-se sempre de vez. Prometo-te que cá em casa não vamos deixar que isso aconteça.

4 Partiste. Partiste e agora é isto, tristeza. Aquela desamparada, inconfundível tristeza como costuma ser aquela da irremediabilidade.