1 Foi ontem ou há um século? As duas coisas. Ficou tudo colado à pele, os dias deixaram marcas , houve rostos que nunca passaram a sépia, nada se desgravou da memória. Foi ontem, claro, pois se lembro de tudo…. Mas há quanto tempo foi “este” ontem chamado Abril de 74?

2 Extraordinário “ontem” onde a vida se consumia na sua própria vertigem , o país ardia num carrossel de tumultos, a revolução corria sempre mais depressa e era preciso apanhá-la. Estava muito calor nas ruas, nas redações, nos estados maiores dos partidos, nos quartéis (para onde me mandava o dr. Balsemão, nesses tempo de glória do Expresso). E quando a tensão das coisas nos obrigava a pernoitar na Duque de Palmela, para acompanhar a sua fervente evolução, sabíamos porém que na manhã seguinte a revolução já nos tinha trocado as voltas: o quadro era outro, os protagonistas tinham trocado com outros protagonistas, recomeçava-se a correr atrás do processo revolucionário em curso. Foi assim durante muito tempo. E de certa maneira foi uma escola de vida.

Falar nisto hoje a alguém com vinte e poucos anos é quase como evocar um tempo histórico de contornos indefinidos: uma bruma onde se misturam – erradas — algumas datas, nomes que nada lhes dizem, sobressaltos que não viveram. E claro, sustos que não tiveram.

Os meus filhos conhecem a história de cor , era o que ouviam — e viam – em casa, mas quando por vezes me acontece mencionar alguns protagonistas de Abril de 74 em ambientes juvenis, deparo quase sempre com olhares marcados pelo seu próprio espanto: “quem?”, “ah foi?”, “a sério?” “mas quando?”… Como as plateias mais jovens quase só conhecem o que vivem, ou não lhes interessa o que lembramos, ou não acreditam que tenha sido “tanto assim”.

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Há pouco tempo ouvi um “Mário Soares, o quê?” como se estivéssemos a falar de um português qualquer, inscrito num passado anterior à revolução francesa. É pena porque aquilo de que lhes falamos é de um tempo em que se acreditava na política e nos políticos, e onde esse acreditar de tão forte e tão convicto, chegou para levar Portugal ao bom porto. O único porto, aliás.

3 Naquele tempo os jornais europeus exportavam para o país os seus grandes repórteres; as estações de televisão idem, num trânsito incessante, que projectava Portugal para qualquer manchete. A peculiaridade da revolução apanhara a Europa e o mundo duas vezes de surpresa: o “golpe de Estado” surgira de madrugada, e num repente vitorioso, o país caíra-lhe aos pés; e o modus faciendi com “flores nas espingardas” e “militares bem intencionados que prometiam regressar aos quarteis” deixara os líderes internacionais entre a incredulidade e a incerteza: que país era aquele onde ao fim de meio século, se virara sem dor a página do autoritarismo vigoroso e de portugueses vigiados?

O Expresso claro, era o obrigatório primeiro “posto” procurado por toda esta gente. Fui conhecendo muitos deles e tecendo vivos laços de cumplicidade. Esse imenso “contingente” estrangeiro estava nos mesmos lugares que nós, procurando as mesmas pessoas e discutindo a política com quase o mesmo grau de familiaridade. Com o tempo fui “herdando” colegas, sobretudo os franceses. Selaram-se amizades — duraram até á morte de alguns deles. A nossa casa tinha a porta e a mesa aberta, a noite desaguava invariavelmente na madrugada, calor e o fervor das discussões chegavam ao rubro. Vinham o René Backman, do Nouvel Observateur, esquerdista impenitente que vivia em Lisboa nas suas sete quintas aplaudindo os radicais de quem se sentia próximo e invectivando-me por eu lhes preferir Soares e Sá Carneiro; o André Pautard (Express) que ficou porventura o amigo mais duradouro do país, regressando sempre e escrevendo sobre Soares, sobre Amália, o Tejo ou a luz de Lisboa: o arguto Jerôme Marchand (Le Point), depois correspondente em Washington onde morreria novíssimo num absurdo desastre de automóvel; ou Jean Rey (Figaro) personagem amável e afável que desconfiava das revoluções. E do Le Monde havia o rebarbativo Dominique Pouchin — com quem Mário Soares faria aliás um livro – que nos “ralhava” por não sermos suficientemente revolucionários ou ao menos terceiro-mundistas e a quem Soares felizmente também “ralhava” pelas razões contrárias!

Foi enfim uma convivência vibrante de entusiasmo, que ia de par com uma espécie de militância política que obviamente variava consoante “se” defendia a revolução ou a democracia.

Tão depressa se passava da luta do “grupo militar dos nove” para as ameaças de cerco a Lisboa; das sedes comunistas incendiadas para os SUV (soldados unidos venceremos…); das avassaladores manifestações nas ruas lideradas por Soares, para os avanços da extrema esquerda radicalíssima. A assembleia dos “estrangeiros” era diversificada mas entre uns e outros, tudo foi maravilhosamente intenso com paragem (mil paragens) no Campo Grande. Há quem diga que se as paredes da nossa casa falassem se escrevia um livro que juntaria o trágico e o cómico — coisa difícil de lograr — sobre o que se passou em Portugal nesse ano e meio inesquecível. Talvez.

4 E porque os últimos serão os primeiros… um dia chegou Jean Daniel. O mítico fundador — e director ~- do Nouvel Observateur. Não me lembro se o conheci no Expresso, se em casa de Helena Vaz da Silva mas lembro-me do essencial: esteve sempre do lado “justo” desta história. Ajudou quanto pôde — e com muita inteligência politica — a democracia portuguesa, abrindo as páginas do seu jornal a Soares e a Melo Antunes, ao grupo dos Nove, à construção do Estado de Direito, á Europa. Influenciou o olhar de uma França naturalmente descrente do PREC, analisando, explicando, escrevendo, entrevistando. Isto é, nunca desistindo de pôr o bom jornalismo ao serviço de uma boa causa que passara também a ser dele. Amigo de Mário Soares a quem admirava a têmpera e o instinto, ficaram tão próximos que já após Soares ter deixado Belém, foram de visita ao Irão numa viagem tão interessante, que Isabel Soares que acompanhou o pai, ainda hoje a recorda. Jean Daniel, conversador irresistível também abrilhantou intelectualmente um serão aqui em casa. Possuía um charme louco e um poder de sedução tão considerável que a omnipresente arrogância francesa nele se derretia á segunda frase. Além de um homem do mundo, culto, civilizado, intelectual interessantíssimo e homem de letras com obra publicada, amava a vida e devorava Camus, argelino como ele. E claro, era sobretudo um grande, grande jornalista. Era-o até ao osso. Um dia pedi-lhe para “estagiar “umas semanas no seu jornal, o Expresso consentiu na fantasia, voei para Paris. Foram dias singulares naquela redação desarrumada, tingidos pela vibração da novidade e embalados pela amizade com o René Backman.

Mas o mais importante de tudo isto é que naquele tempo de Jean Daniel, tinha havido bons chefes, o combate fora de vida ou de morte e ganhara a vida e tínhamos colectivamente acreditado. Naquele tempo foi assim.

E hoje?