A estrada de Borba que caiu entre duas pedreiras, os homens, mulheres e crianças dos incêndios de 2017, a família inteira que morreu numa casa onde ninguém podia estar a viver. Pequenos retratos de um Portugal ignorado, deserdado do desenvolvimento. A posição assumida pela ministra da Cultura em relação às touradas e todo o debate que se seguiu é igualmente um exemplo da distância que separa os urbanitas que vivem a cultura global dos que vivem longe das viagens a Nova Iorque ou se agarram às suas tradições.

Onde nos pode levar esta distância?

De um lado estão os que se concentram em problemas que estão na crista da onda mais urbana – como a identificação de género, os direitos de minorias e os direitos dos animais – ou questões de direitos básicos, como o acesso a uma casa que se consiga pagar, no centro da cidade. Vivem nas grandes cidades e têm tudo: boas estradas, muitos balcões de bancos e correios, escolas e universidades variadas, hospitais de topo com os melhores profissionais. Podem escolher como vão trabalhar, se a pé, de bicicleta, metro ou de carro. Têm boas auto-estradas para passearem pelo resto do país.

Do outro lado estão os portugueses que vivem nas aldeias e vilas. Que vão vendo encerrar o último balcão do banco ou dos correios, que não têm uma farmácia e muito menos um centro de saúde, que viram fechar a escola. E que, se querem sair dali para algum lado, têm de ter um carro e usar uma estrada também ela esquecida pelo Governo e pela autarquia, que são poucos os votos que por ali há. Para eles também não há rendimento social de inserção ou porque nem sabem como lá chegar ou porque não são “elegíveis” porque ganham algum rendimento. São os “Esquecidos” como lhes chama Alexandre Homem Cristo.

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Esta desigualdade de acesso e do mundo mais urbano é cada vez mais difícil de medir com números. Entra-nos pela casa a dentro apenas quando uma tragédia como o colapso da estrada de Borba, a morte trágica de uma família ou os incêndios nos fazem entrar nesse Portugal deserdado.

Esta desigualdade gerada pela urbanização é igualmente amplificada pela crescente existência de negócios que só são rentáveis com uma dada dimensão de clientes. Situação que é ainda agravada por privatizações de serviços com características monopolistas – como é o caso dos Correios – sem cuidar de garantir um adequado serviço público. A que se soma o facto de o Estado, com falta de dinheiro, ter também ele começado a actuar numa óptica de rentabilidade, quer eleitoral como financeira. Este último factor explica o encerramento de serviços de saúde ou mesmo de tribunais que podiam combater a desertificação.

O poder autárquico deveria, teoricamente, ter contribuído para moderar esta desigualdade da urbanização. Mas também ele, poder autárquico, deixou de se focar no que é importante para se concentrar no que é eleitoralmente rentável no curto prazo. Ou até no que lhe pode dar notoriedade no mundo dos urbanitas. É assim que vemos, só para dar um exemplo, ciclovias construídas apenas em sítios de lazer, esquecendo-se que a bicicleta, hoje tão na moda, é o meio de transportes de algumas pessoas entre algumas aldeias ou vilas. Mas ninguém parece lembrar-se de escolher fazer uma ciclovia ou pelo menos uma via ao lado da estrada para essas pessoas.

O esquecimento a que são votados os “não urbanitas” é ainda alimentado por um sistema eleitoral que tem a lógica dos negócios que exigem massa critica: só vale a pena ir ao encontro do que as pessoas desejam quando o número é suficientemente elevado para fazer mexer o ponteiro dos votos. Junta-se a isso uma administração pública que se foi deixando armadilhar pelo partidarismo e pela falta de liderança profissional, só assim se explicando que os alertas sobre a estrada de Borba tenham andado perdidos, sem que ninguém actuasse, desde 2014.

Nos Estados Unidos, os deserdados dos urbanitas globalizados votaram Donald Trump. Em Itália elegeram Matteo Salvini. Por cá é pouco provável que tal venha a acontecer, simplesmente porque os não urbanitas são poucos, não mexem o ponteiro dos votos. Podemos ficar confortados com isso, com o facto de corrermos menos riscos de sermos apanhados pelos populistas. Mas o risco mínimo não significa que não exista ou que não se torne cada vez maior. A distância entre as elites urbanas e o comum dos mortais tende a agravar-se à medida que mais e mais portugueses comecem a ser olhados como “incivilizados”.