Há cerca de uma semana acusei o académico Pedro Schacht Pereira de difundir mentiras a meu respeito, de me difamar e de tentar descredibilizar-me como historiador, nomeadamente ao descrever-me aos seus leitores como “um autodidata que se dedica ao estudo nas horas vagas” e ao afirmar que os “historiadores sérios” não me considerariam “um interlocutor válido”. Procurei mostrar, também, que a difamação, a mentira e a desvalorização dos opositores eram, em certas condições, métodos de combate dos activistas woke.
Pedro Schacht invocou o direito de resposta e publicou um texto no Observador. Mas não o fez para provar que não é difamador — algo de que volto a acusá-lo —, e também não o fez para refutar uma única das imputações que eu lhe havia feito — a esses costumes disse nada, como se nada tivesse a ver com tal assunto. Fê-lo para esclarecer os leitores do Observador sobre — e cito-o — “a única razão pela qual alguma vez” escreveu “uma linha sobre” mim. Essa “única razão” seria perguntar, muito candidamente e sem qualquer má intenção, quando teria sido a última vez que uma publicação minha teria passado por escrutínio científico.
Ora, esta é uma nova mentira, pois essa não foi a única nem, sequer, a principal razão dos seus escritos sobre a minha pessoa. Para se fazer uma ideia da dimensão e qualidade da coisa, bastará dizer que Pedro Schacht me dedicou mais de 100 posts no seu mural de Facebook, que é público, isto sem contar com os comentários depreciativos, insultuosos e difamadores feitos em murais igualmente públicos de outras pessoas. Nessas intervenções há um pouco de tudo, desde a pura e simples calúnia até à atribuição de alcunhas mais próprias de um aluno do básico do que de um professor universitário — para Schacht eu seria “Pinheiro Chagas” ou, mais frequentemente, personagens estúpidas e ridículas de romances de Eça de Queirós. Sim, este professor de Estudos Portugueses na Universidade de Ohio tem destas criancices, tal como também a têm vários académicos woke que o aplaudem e que vão papagueando as suas graçolas. E, sim, esta pessoa que agora aparece muito composta e razoável no Observador, e muito queixosa do meu suposto “azedume” e “exaltação” — que Schacht considera impróprios de um historiador —, é a mesma que, repito, me dedicou mais de uma centena de posts em tom chocarreiro ou injurioso.
Para se desviar desse muito incómodo e comprometedor ponto — que era, aliás, o ponto central do meu anterior artigo —, e para desviar, também, a atenção de quem segue a polémica, Schacht dedica quase metade do seu “direito de resposta” a explicar aos leitores do Observador (e, supostamente, também a mim) as regras de escrutínio das revistas académicas e outras minudêncas do género. Eu quero dizer a Pedro Schacht que conheço as regras. A primeira vez que publiquei numa prestigiada revista académica (a revista francesa de antropologia L’Homme) ainda Schacht devia andar pela pré-infância da arte. Devo acrescentar que também conheço o significado das palavras “pares” e “escrutinar”.
Mas ao tentar focar a nossa atenção em pormenores desses, Schacht apaga convenientemente o meu ensaio de 2010, publicado em Nova Iorque e Oxford, do qual se obstina em não tomar conhecimento, para não ter de o considerar e valorizar. É por isso necessário voltar a pô-lo mesmo à frente dos seus olhos. Pedro Schacht pode fingir que não o vê, mas esse livro existe, foi escrutinado, debatido e criticado pelos melhores historiadores da escravatura, foi tema de seminários na Universidade da Flórida e no Instituto de Genève, e, como Ira Berlin escreveu em 2015, tornou-se central nos debates sobre a emancipação dos escravos. Portanto, se Schacht, não considera academicamente válida, de acordo com os seus altos padrões, uma recensão que escrevi e recentemente publiquei na Análise Social terá, pelo menos, de encontrar nesse livro a resposta à sua insistente e nada inocente pergunta, e de reconhecer que a última vez que uma publicação minha passou por um apertado crivo científico foi em 2010 e anos seguintes (e não na longínqua década de 1990 como ele teimava em afirmar com o óbvio intuito de me apresentar como muito antiquado e não reconhecido). Acrescente-se que esse meu livro, cujo título em português é Revoltas Escravas. Mistificações e Mal-Entendidos, foi bibliograficamente actualizado e republicado em Lisboa, em 2021, pela Guerra e Paz, a tal editora que Schacht desvaloiza por não ter os padrões de exigência das editoras académicas.
Tendo ignorado esse livro de 2010 (ou de 2021, se se preferir), Pedro Schacht prefere antes falar de outro livro meu, The Sounds of Silence. Nineteenth-century Portugal and the Abolition of the Slave Trade, publicado em 2006, para o reputar a tal ponto importante que recomenda a sua leitura. Acrescenta que até ele próprio — imagine-se — o citou num artigo seu e que também o indicou a uma doutoranda sua. Eu agradeço, desvanecido. Mas, concedendo que o livro é importante, Schacht afirma que eu agora defendo “ideias diametralmente opostas” às que, então, desenvolvi, e que isso teria sido cabalmente demonstrado. Onde e por quem? Os leitores pensarão que terá certamente sido na academia, dado o valor que Schacht lhe atribui, e que esse trabalho crítico tenha sido levado a cabo por colegas de história da escravatura, os únicos pares a quem Schacht reconhece competência para o efeito. E ficarão provavelmente surpreendidos ao saber que as minhas supostas contradições teriam sido demonstradas pela preclara jornalista Fernanda Câncio.
A crítica que Fernanda Câncio fez num artigo de jornal, e à qual em devido tempo muito sumariamente respondi, é a crítica de alguém que não leu o livro — 460 páginas dão muito trabalho a ler — ou, se leu, não o compreendeu. Mas o mais provável é que Câncio tenha visto apenas a introdução e que tenha lido essas e outras linhas minhas não como uma análise objectiva do que se passou, mas como um ataque político e ideológico a Portugal. Terá lido mal pois o livro não é e nunca pretendeu ser isso. Pretendeu ser, isso sim, um retrato tão fiel quanto possível das atitudes portuguesas face à abolição do tráfico de escravos. Aliás há, nomeadamente no seu capítulo 5, uma avaliação positiva da forma como, a partir de 1840, os governos portugueses se empenharam no combate a esse tráfico. Mas é claro que, nestes seis anos de debate, as pessoas a que chamo “flagelantes” ou “wokes”, pessoas entre as quais Schacht e Câncio pontificam, nunca referiram nada desse capítulo 5 e de outros textos meus da mesma época que provavelmente nem leram. Não se dão, por isso, conta de que a acusação de que eu me contradiria é totalmente falsa.
Claro que a montante dessa acusação há uma outra, mais importante, mas igualmente falsa: a de que eu teria renegado as minhas próprias teorias e interpretações. O objectivo dos que me acusam de ter feito um flic flac intelectual é o de estabelecer uma distinção entre o João Pedro Marques historiador de há 20 ou 30 anos e o que escreve nos jornais nestes anos mais recentes. Se provassem ou, pelo menos, sugerissem fortemente que o historiador de hoje já não é o de antigamente, desvalorizariam e enfraqueceriam as minhas opiniões actuais que seriam vistas como uma degenerescência. Por isso Schacht bate constantemente nessa tecla, insistindo nessa forma ardilosa e venenosa de promover a minha descredibilização.
Pedro Schacht não gosta que eu o situe, e ao seu séquito, na extrema-esquerda. É estranho que esse rótulo o incomode e que queira sacudi-lo para longe de si, porque o seu posicionamento ideológico e político não oferece dúvidas a qualquer observador que queira dar-se ao penoso trabalho de ler — como eu li — o seu mural de Facebook. Eu não conheço Schacht de parte nenhuma a não ser através desse mural, mas trata-se de um cartão de identidade muitíssimo esclarecedor. Não apenas sobre ele, mas também sobre muita gente que é sempre tão sapiente e fortalhaça nas páginas do Facebook e que, no entanto, se encolhe quando se trata de vir a público debater a história milenar da escravatura e o papel de Portugal nessa iníqua e extensa página do passado. E isso é que verdadeiramente interessa, não estas questões de somenos. De todo o modo, e como Schacht se queixa de que eu o desqualificaria devido ao seu posicionamento político, o que seria antidemocrático, devo esclarecê-lo de que está enganado. Eu não o desqualifico por ser de extrema-esquerda. Desqualifico-o, sim, porque mente, porque destorce, deturpa e sofisma as questões, e pela forma maliciosa como tenta atingir-me e a outros (pois que, sendo eu o seu principal alvo, não sou o único).