Será perigosa a História que escrevemos e que temos ensinado nas nossas escolas? Há muita gente nova — sim, esta também é uma questão geracional — que acredita nisso e quer obstar ao suposto perigo daquilo a que chama a “narrativa dominante” com a introdução de várias narrativas sobre os mesmos acontecimentos, esquecendo que foi justamente isso que os historiadores que investigaram os assuntos já fizeram, filtrando e digerindo os múltiplos testemunhos no processo de elaboração da tal “narrativa dominante”. Há aqui um persistente mal-entendido sobre o que é a História e como ela se escreve e se ensina.

Marta Mucznik escreveu recentemente um artigo no Observador que, de forma involuntária, ilustra bem esse mal-entendido. Nesse artigo defendeu a contraposição e eventual bissectriz das “múltiplas histórias” que coexistem no mesmo lugar, em vez da imposição da “histórica única”, e incentivou-nos a aderir a essa ideia: “o confronto de narrativas, a discussão das diferentes interpretações sobre alguns momentos da nossa história, nomeadamente os mais sombrios, não devem ser sinónimos de traição ou falta de patriotismo”.

Mas a História não é, apenas, nem sequer principalmente, um confronto de narrativas, como se fosse um jogo de futebol com onze de cada lado. É algo que está para além disso e que implica uma crítica muito exigente. A História é conhecimento através de documentos, daqueles documentos que o esforço de preservação, o acaso e a sorte fizeram chegar até nós. É verdade que o passado dos povos sem escrita ou outras formas de registo gráfico só se conhece — quando se conhece — de modos mais indirectos, mais incertos e muitas vezes através daquilo que os outros escreveram sobre eles. Essa é uma lamentável mas irremediável lacuna. É também verdade que o passado não está coberto por igual. A História é um saber mutilado e descontínuo. Sobre certas épocas temos muita documentação, sobre outras nenhuma ou quase nenhuma e sobre o que não está documentado podemos apenas conjecturar. Ora, é importante que as pessoas separem o que é conjectura do que está assente em documentos, e que percebam que os historiadores têm de respeitar esses documentos. Dois historiadores diferentes podem pôr a tónica em coisas diferentes, podem preferir pegar por uma ponta ou por outra, mas, sendo honestos, não podem concluir o contrário do que ressalta da documentação. Subjectividade não significa arbitrariedade nem ausência de critérios de rigor. E é justamente por falar em critérios de rigor que é também importante que, para não comerem gato por lebre, as pessoas percebam que História e memórias — nas quais assentam muitas das tais “narrativas alternativas” — não são igualmente rigorosas. Já escrevi várias vezes sobre isso, mas talvez seja útil voltar ao assunto para sublinhar dois ou três pontos.

Ainda que a História seja uma narrativa ela tem as suas particularidades e exigências. Ao contrário da novela e do conto, que podem ser inteiramente ficcionais e apenas verosímeis, a História tem de ser verdadeira e documentada — isso é imprescindível. Ao contrário das memórias que podem ser tendenciosas, emotivas, enevoadas, lendárias, a História deve ser isenta, racional, clara e tão exacta e profunda quanto possível. É, por isso, muito inquietante que haja tanta gente jovem a fazer leituras emotivas da História e a desejar a bissectriz ou a amálgama que Marta Mucznik propõe e advoga. Uma amálgama que tende a dissolver a seriedade e a solidez do conhecimento histórico num novelo de memórias ad hoc, como se fosse tudo farinha do mesmo saco. Esse esforço para amalgamar e confundir é o infeliz resultado de duas coisas conjugadas: uma ideologia que quer fazer do passado uma minestrone politicamente correcta; e um ensino que tem estado e continuará certamente a estar ao serviço dessa ideologia.

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Estarei a exagerar? Julgo que não. Li há dias o programa de “História, Culturas e Democracia”, uma nova disciplina destinada a alunos do 12º ano do Ensino Secundário. A disciplina organiza-se em torno de quatro temas um dos quais tem a seguinte designação: “Passados Dolorosos na História”. A designação deste tema levantou-me logo à partida várias interrogações. Por que razão se prefere pôr o foco nos passados dolorosos e não nos passados construtivos ou auspiciosos? Porque não focar ambos? Que tipo de História se pretende ensinar assim? Trata-se, manifestamente, de uma História expiatória que corresponde, entre outras coisas, a uma encomenda política e que cria uma espécie de contradisciplina. Partindo do princípio de que, no passado, e reportando-me apenas a Portugal, a disciplina de História teria feito descrições demasiado laudatórias dos feitos de alguns dos nossos antepassados, descrições essas que, segundo as mentes politicamente correctas, teriam supostamente suprimido as referências aos aspectos perversos ou cruéis da actuação portuguesa no mundo, o Ministério da Educação resolveu injectar nos programas (e nos alunos) o correspondente antídoto. Não contente com isso decidiu, também, usar a História como instrumento terapêutico para a pacificação de potenciais conflitos e de velhas inimizades. De facto, o programa da disciplina afirma que “assumir as heranças dolorosas pode e deve contribuir para o apaziguamento das relações sociais inerentes a uma cultura democrática”. Ora, isso não é História, é ideologia e voluntarismo. A História não tem essa função ou vocação, não é engenharia política e social, não é um cachimbo da paz nem um artefacto de reconciliação, o seu único compromisso é para com a verdade. Não é legítimo moldá-la, adocicá-la ou avinagrá-la para servir outros propósitos.

Percebo muito bem — e partilho — a inquietação de Jaime Gama, que, como é público, se insurgiu contra esta nova disciplina por detectar, nela, uma intencionalidade e uma agenda política. Mas aquilo que mais me preocupa é justamente o facto de a dita disciplina tentar fazer uma equiparação venenosa entre memória e História. De facto, o seu programa refere explicitamente que “as memórias individuais e coletivas devem ser valorizadas, pois constituem contributos importantes para a compreensão das questões socialmente vivas”. Perante isto é possível que os alunos e alguns professores fiquem a pensar que as memórias do senhor A, da senhora B ou do povo C são História. Não são. São apenas testemunhos sobre acontecimentos passados, testemunhos esses que podem ser falsos ou muito distorcidos. Ao contrário do que Marta Mucznik teme, não há qualquer perigo em haver uma “história única”, desde que seja verdadeira e abrangente. O perigo é haver várias histórias falseadas para fazer a vontade aos que se dizem descendentes das vítimas de um distante passado. Isso, sim, é perigoso e não é História, é mito e manipulação.

Mito e manipulação que se percebem muito claramente quando pedimos às pessoas que reivindicam a necessidade de “outras narrativas” que nos indiquem com exactidão o que é que gostariam de ver incluído ou alterado na chamada “narrativa dominante”. O que elas muitas vezes indicam são ficções politicamente correctas e sem razoabilidade ou suficiente sustentação histórica. Na área que conheço melhor — a que se relaciona com a escravatura — os defensores das “narrativas alternativas” querem, por exemplo, que se ensine que os escravos negros estavam sempre dispostos a rebelar-se e que a escravatura acabou devido precisamente à sua resistência e revolta. Ora, isso não é verdade nem no caso dos escravos negros nem, acrescente-se, no de quaisquer outros escravos. É apenas uma memória fantasiada e romântica que estará na cabeça de muitas pessoas, mas não nos factos documentados. Não obstante, e ainda que, no geral, não corresponda à verdade histórica, essa memória tem feito o seu caminho graças aos bons serviços de académicos, activistas e organizações como a UNESCO.

Memória e História são coisas diferentes e a primeira, ainda que possa ser muito útil, não tem nem de perto nem de longe o mesmo grau de rigor e de fiabilidade de uma História firmemente escorada por documentos escritos. Haverá quem sustente que esses documentos — cartas de 1800, por exemplo — mais não são do que as memórias de alguém nesse momento, e que têm exactamente a mesma fiabilidade e valor que as actuais memórias dos descendentes de antigos povos sem escrita. Mas é óbvio que as memórias recolhidas ou veiculadas agora sobre acontecimentos ocorridos há 200 anos ou mais têm um grau de deturpação, pela transmissão de boca em boca, e de contaminação pelos interesses políticos e ideológicos da actualidade, que as cartas escritas em 1800 não têm. E isso faz muita diferença. Uma coisa é uma narrativa assente em documentos escritos há muito, pelos contemporâneos dos acontecimentos, outra coisa é uma narrativa dependente de tradições orais e da memória que as pessoas hoje em dia conservam desses acontecimentos. Era isso que devia ser explicado e até eventualmente experimentado ou demonstrado em aulas práticas aos alunos do 12º ano. Seria educativo. A não ser assim, receio que o tema “Passados Dolorosos” da nova disciplina de “História, Culturas e Democracia” se converta em mais uma plataforma para a gente politicamente correcta se empenhar em escurecer o passado deste país e do resto do Ocidente.