Não considero o ataque ad hominem que João Pedro Marques me dedica na sua última coluna de opinião digno de resposta, e por isso concebo este exercício do direito de resposta apenas como um serviço prestado aos leitores do Observador, no sentido de repor a verdade sobre a única razão pela qual alguma vez escrevi uma linha sobre ele. Nesse sentido, começo por citar a pergunta com que inicio o post de Facebook de 29 de janeiro referido na coluna de João Pedro Marques: “quando foi a última vez que uma publicação dele passou por qualquer forma de escrutínio científico?”. Tanto em termos lógicos como gramaticais, depreende-se que “quando foi a última vez?” assume tacitamente que já houve pelo menos uma vez em que o objeto da pergunta teve lugar. Mas vamos por partes.

Quando se envia um manuscrito para uma revista académica bem cotada, o(s) editor(es) é/são a primeira pessoa a lê- lo. Após essa primeira fase de escrutínio, o manuscrito é enviado para pelo menos dois leitores (às vezes três, quatro, ou até cinco, sobretudo quando é necessário desempatar uma votação não unânime), pessoas com idoneidade comprovada na área científica em questão. A identidade do autor do manuscrito é ocultada aos avaliadores, da mesma forma que a identidade destes é ocultada ao autor do manuscrito. Percebe-se: não sendo um sistema infalível, a preservação do anonimato garante que o foco da arguição permanece sobre as ideias e não sobre as pessoas. É um sistema mais objetivo do que o seguido por publicações que apenas oferecem escrutínio editorial, onde sempre é possível imiscuir-se uma lógica do favor. Ademais, é importante perceber-se que nem todas as revistas seguem os mesmos padrões, razão pela qual são indexadas de forma diferente nas plataformas como Web of Science e Scopus, entre outras. Por outro lado, é preciso que os leitores saibam que nem todas as revistas académicas seguem os mesmos padrões de exigência para as recensões, entrevistas, catálogos de exposições, etc., até porque se trata de trabalho com valor residual ou nulo para efeitos de progressão na carreira. Por fim, há atualmente muitas universidades onde uma única monografia nem sequer dá acesso a efetivação na carreira, e muito menos a progressão. Ora, no seu artigo João Pedro Marques menciona a sua recente recensão na revista Análise Social como um exemplo de publicação escrutinada por pares, no entanto, na página na Internet da revista as normas estão claramente definidas, e dizem que “todas as recensões serão avaliadas por um/a editor/a responsável, de acordo com a área temática em que se enquadrem”, pelo que me pergunto se João Pedro Marques percebe de facto a diferença entre revisão editorial e revisão cega por pares, ou se se trata apenas de um importante lapso.

Presumo, por outro lado, que o seu livro The Sounds of Silence. Nineteenth-century Portugal and the Abolition of the Slave Trade, (publicado na série European Expansion and Global Interaction da editora Berghan Books em 2006), passou por escrutínio científico. Mesmo que o processo não tivesse incluído a avaliação anónima por pares, eu sei que, por ter resultado da sua tese de doutoramento, o livro passou pelo escrutínio do orientador, do júri das provas de doutoramento, e dos editores dessa série. De resto, eu cito esse livro num artigo meu, e uma doutoranda minha citou- o também na sua tese. É um livro importante, que preencheu uma séria lacuna, e recomendo a sua leitura. Acontece que, e como a jornalista Fernanda Câncio demonstrou aqui, nos artigos de opinião e livros que vem publicando desde pelo menos 2017, João Pedro Marques defende ideias diametralmente opostas às que desenvolveu no seu livro. E ao publicar os livros mais recentes em editoras não académicas, é lógico supor que não passaram pelo escrutínio científico, porque os padrões de exigência para textos de opinião não são os mesmos. Nunca coloquei em causa o percurso académico do autor, e das vezes que intervim em público sobre textos seus sempre tive a preocupação de clarificar que se tratava de crítica às posições por ele assumidas em artigos de opinião ou nos livros que publicou nos últimos anos na editora Guerra e Paz.

Um exemplo da falta de rigor que caracteriza a escrita atual do autor está nas acusações que me move a mim e a terceiros, de que militamos na “extrema-esquerda”. De resto, é uma prática também seguida na referida recensão publicada em Análise Social, onde começa por acusar o autor do livro recenseado de “um indisfarçável parti pris” (872). É evidente que João Pedro Marques não sabe nem pode saber qual é a minha identidade política, e que isso tampouco constitui matéria relevante ou razão para se desqualificar automaticamente alguém. Presumir o contrário é incorrer num gesto antidemocrático, pois é evidente que adversários políticos (se fosse esse o caso) podem e devem conversar; é isso que acontece todos os dias numa democracia parlamentar. O gesto de desqualificar potenciais interlocutores por razões de ordem política coaduna-se muito bem com o azedume e a exaltação, sinais de uma cruzada ideológica, mas não com o conhecimento rigoroso que se espera de um historiador, no ativo ou aposentado.

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