O leitor dá licença que principie este texto com, porventura, o pastiche mais gasto na história das crónicas sobre cumplicidade com a discriminação quando não somos pessoalmente afectados? Trata-se – decerto já adivinhou, enfadado – da enésima versão do poema de Martin Niemöller sobre os nazis que foram prendendo vários grupos de opositores perante o silêncio conivente do narrador, até virem finalmente buscar o próprio narrador. Um poema que mostra duas coisas: que compactuar com um mal só porque não nos diz directamente respeito vai acabar por nos custar caro; e que os nazis, apesar da sua tão gabada capacidade logística, perderam bastante tempo ao não se organizarem para arrebanhar todos os dissidentes de uma só vez. Prometo uma abordagem mais fresca e, acima de tudo, breve. Cá vai:

Primeiro cancelaram os maus e eu não me importei porque diziam maldades bem ruins, além de que não se podia chamar àquilo “cancelamento”, era só a consequência do que diziam

Depois, alguém disse que eu era mau e cancelaram-me a mim

O que é ridículo, pois eu sou boazih… o quê? Como assim já não posso falar? Isto é cancelamen

Viram? Uma pertinente crítica a quem diz que não há cultura de cancelamento até ser cancelado. Segue-se uma pequena selecção de cancelamentos dos últimos dias: a Feira do Livro de Frankfurt adiou a entrega de um prémio à escritora palestiniana Adania Shibli porque o seu livro trata da guerra israelo-árabe de 1948; dois jogadores de futebol foram castigados pelos clubes por publicações nas redes sociais de apoio à Palestina e condenação a Israel; um cartunista foi despedido do Guardian por um desenho supostamente anti-semita; uma actriz pornográfica foi despedida da Playboy por tuítes anti-israelitas; vários países têm limitado ou mesmo proibido manifestações de apoio à Palestina.

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Especificamente relacionado com o nosso Portugal, Paddy Cosgrove demitiu-se da Web Summit, depois de o Governo de Israel não ter apreciado um tuíte crítico e ter apelado ao boicote da feira tecnológica (apelo seguido por várias empresas).

Todos estes casos de cancelamento surpreenderam as pessoas que dizem que não existe cancelamento. Quer dizer, na realidade elas até sabem que existe cancelamento, não lhe chamavam era cancelamento. Chamam-lhe “mercado a funcionar”, “proibição de discurso de ódio” ou “é a vida!”. “Cancelamento” remete para um comportamento autoritário de quem não admite contestação e elas preferem considerar que o que chamamos “cancelamento” é apenas a reacção, benevolente e justa, face a uma agressão. É natural que fiquem espantadas ao descobrir que algo que defendem seja visto por alguém como ofensivo e objeccionável. O que os choca não é descobrirem que existe cancelamento, é descobrirem que há quem julgue que são más pessoas a dizerem coisas desagradáveis.

No fundo, alguém que afirma não existir cultura de cancelamento ser vítima de cancelamento é como um negacionista do Covid apanhar Covid. Recusa-se a acreditar que a doença que diz não existir o está a afectar a ele. “Ranho? Isto não é ranho, é humidade de nariz. E não estou com tosse, é um beat para um tema de hip hop em que estou a trabalhar. Yo!”

É uma metáfora duplamente apropriada. Não só pelo génio do símile, mas porque o grupo dos negacionistas do Covid é justamente um dos mais cancelados dos últimos tempos. E logo pelas mesmas pessoas que negavam existir cancelamento e que agora, a propósito do conflito entre Israel e Palestina, foram canceladas.

O problema da cultura de cancelamento é esse: mais cedo ou mais tarde, deixamos de ser nós os cultos. Neste momento, os simpatizantes da Palestina estão a perceber que é possível que uma causa que defendem seja silenciada. Basta haver quem se sinta ofendido e creia que isso é razão bastante e suficiente para calar quem ofende. Não tem que ver com a bondade da causa, isso é irrelevante; tem que ver com haver um autoritário que não a aprecie e a ache imoral.

Quer dizer, alguns estão a perceber. Outros, nem por isso. Na semana passada, houve gente que, ao mesmo tempo que se insurgia contra a condenação de Mamadou Ba por ofender, celebrava a suspensão do Twitter de várias contas de extrema-direita por ofenderem. Contas essas em que, certamente, militantes de extrema-direita vitoriavam a condenção de Mamadou Ba, enquanto protestavam contra a decisão do Twitter de lhes fechar as contas. Um caso claro em que pimenta no discurso dos outros acaba por ser refresco.

Ora, é possível defender ao mesmo tempo que Mamadou Ba tem o direito de dizer que Mário Machado foi uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro e também que os fascistas têm direito de dizer alarvidades na internet. É o que eu direi aos canceladores se um dia vierem fechar esta crónica.

Em 1977, nos EUA, a ACLU (União Americana de Liberdades Civis) representou em tribunal um grupo de nazis que queriam marchar em Skokie, cidade habitada por muitos sobreviventes do Holocausto. O tribunal reconheceu-lhes o direito a manifestarem-se, garantido pela 1ª Emenda. O advogado da ACLU que aceitou defender a liberdade de expressão dos nazis chama-se David Goldberger e é judeu. Felizmente para ele, não tem conta no Twitter, por isso não vai ser cancelado nem pelos amigos do Mamadou Ba, nem pelos do Mário Machado.