Os holandeses não tiveram um João Villaret, que popularizou a fábula da “Cigarra e da Formiga” na versão de Mário Pederneiras. E que assim fez com que alguns de nós simpatizássemos mais com a Cigarra do que com a Formiga. Até poderemos ter sido, nós, os espanhóis e os italianos, um bocadinho cigarras. Mas ao contrário da fábula, existe nesta história um “fiscalizador” que tenta que todos acumulem no bom tempo, para terem dinheiro no inverno económico. Se não foi assim, quem devia ser investigado era a Comissão Europeia. E é um erro pensar que uns estão pior que outros, cigarras e formigas estão a ser arrasadas pela pandemia, indiferente a quem poupou ou não.

Comecemos por contar o que se passou para quem não tenha acompanhado a história. O ministro holandês das Finanças Wopke Hoekstra terá sugerido, no âmbito da reunião dos ministros das Finanças do euro, que a Comissão Europeia investigasse porque é que alguns países estão sem margem de manobra para fazer face a esta crise, na sequência da proposta de emitir dívida europeia – as famosas “eurobonds” – por parte de um grupo de países em que se inclui Itália e Espanha. A Cimeira Europeia  correu igualmente mal, com a Espanha e a Itália a bloquearem o comunicado final, como se pode ler nesta descrição do El País. O primeiro-ministro António Costa reagiu de forma invulgarmente agressiva, classificando as declarações do ministro das Finanças holandês como “repugnantes” e dizendo que ninguém tem paciência para comentários de ministros holandeses, como aqueles que enfrentámos na crise financeira e das dívidas soberanas. E reforçou o que disse, dizendo que deviam estar a brincar com ele quando lhe perguntaram se estava arrependido de ter feito tais declarações.

António Costa podia até ter ido mais longe. A desconfiança dos holandeses em relação à forma como os países do sul da Europa gerem as suas finanças não é de hoje, nem de 2010. Desde a fundação do euro que a Holanda olha com desconfiança para os países do sul da Europa. Na altura, houve um ministro holandês que, na luta contra a entrada desses países no euro, chamou-lhe o Clube Med. E na realidade os holandeses não estão sozinhos, são apenas os que verbalizam essa desconfiança. Aliás, o Pacto de Estabilidade foi uma das formas de acalmar essa desconfiança, esse medo que as cigarras se aproveitassem das formigas.

O que é grave nestes alertas não é o conteúdo em si, mas a sua total falta de oportunidade, o que os torna, como diz António Costa, “repugnantes”. Mas por outras razões.  O governo holandês não devia pedir que se investigassem os países – ou, na versão holandesa, que se tentasse perceber o que falhou para que uns tenham margem financeira para enfrentar a crise e outros não. Devia antes investigar a actuação da Comissão Europeia nestes últimos anos de expansão económica, além de fazer uma auto-crtica no Eurogrupo e no Conselho Europeu.

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Porque foram a Comissão, o Eurogrupo e o Conselho que deixaram passar contas públicas com medidas de redução do défice que de estrutural nada tinham, que deixaram que se adoptassem medidas que teriam um impacto significativo na qualidade dos serviços, se a despesa não aumentasse depois significativamente.

O caso português é um bom exemplo. Para satisfazer as clientelas mais vocais, reduziu-se o horário semanal de 40 para 35 horas sem ter dinheiro para compensar essa diminuição, não se investiu e deixou-se degradar os serviços públicos. Podíamos ter ido mais longe, reduzido mais a dívida pública e teríamos hoje uma base mais sólida do que diz Mário Centeno para enfrentar a crise. Mas quem alertava para esses problemas era (como é) invariavelmente acusado de estar contra o Governo, para citar apenas uma declaração de intenções e evitar a divulgação de insultos.

Todos sabíamos que era uma questão de tempo, inclusivamente o Governo, até vir ao de cima a forma como se estava a controlar o défice: um colete de forças que um dia ia rebentar. Infelizmente para todos nós rebentou da pior forma, com um gravíssimo e inesperado problema sanitário. É verdade que mesmo que tivéssemos sido financeiramente mais racionais na gestão das contas públicas – mais formigas – enfrentaríamos o mesmo problema, com a diferença importante de termos mais margem do que temos e, mais importante ainda, não teríamos medo do tempo depois do coronavírus, quando os mercados começarem a olhar para a dívida. Felizmente não estamos sozinhos, e é isso que os holandeses não compreenderam. As formigas vão sofrer tanto como as cigarras, umas e outras vão ver as suas dívidas públicas dispararem e precisam de ajuda e de se apoiarem mutuamente. Pode ser indiferente ter sido cigarra ou formiga.

Cada um dos países terá de levar em conta os seus condicionalismos políticos, a sua atitude mais de cigarra ou mais de formiga. E a União Europeia tem de encontrar uma solução que faça a ponte entre as cigarras e as formigas, entre as pombas e os falcões, na linguagem dos banqueiros centrais. E há uma solução, nomeadamente aquela que é proposta pelo governador do Banco de Portugal na entrevista ao Expresso: financiar os países através de obrigações emitidas pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade, mas – e este “mas” é muito importante – sem impor condições de política económica, como aconteceu nos programas de ajustamento, por nós conhecido como a era da troika. A única condição aceitável é que esses recursos sejam usados para pagar os custos associados à pandemia, podendo eventualmente alargar-se para financiar uma reserva estratégia no sector da saúde. Não é mutualização da dívida, mas é o que é politicamente possível: sossega os países do Norte e, ao mesmo tempo, não acorda os fantasmas dos resgates que tanto fizeram sofrer os países do Sul.

Todos têm de ter consciência de que a crise que se avizinha será brutal, mesmo com os apoios, inéditos, que os governos estão a dar. O FMI tem um levantamento desses apoios que atingem o seu máximo nos Estados Unidos mas que são igualmente elevados em países como Portugal. A linha de crédito de 3 mil milhões de euros (1,4% do PIB), o adiamento de algumas obrigações fiscais estimado em 5,2 mil milhões de euros (2,5% do PIB) e mil milhões de euros ou 0,5% do PIB de reduções nas contribuições para a segurança social somam 4,4% do PIB, contas feitas pelo FMI. São valores muito significativos para um país da dimensão de Portugal que estão estimados por baixo, já que não estão aqui contabilizados os apoios associados ao lay off, nem aqueles que vão ser dados às pessoas em quarentena ou que têm de ficar em casa por não haver escola para os filhos. E que comparam com valores da ordem dos 4% na Alemanha ou de 2% em Espanha, também nas contas do FMI.

Uma outra forma de olhar para a dimensão da intervenção, que o Governo está a fazer para reduzir o impacto da pandemia, é olhar para o alívio de tesouraria que existirá durante este trimestre: contabilizados os 9,2 mil milhões de euros que o Fundo identifica com base em dados do Governo e juntando os 9 mil milhões de euros que se estima que seja o efeito da moratória de seis meses para os empréstimos, estamos a falar de mais de 8% do PIB. Como está tudo concentrado no segundo trimestre, as medidas têm capacidade de libertar tesouraria equivalente a 25% do PIB (somando 9,2 com 4,5 de valor equivalente ao trimestre da moratória). Tudo isto pode evitar a falência de muitas empresas, condição para se chegar à fase em que já podemos abrir a economia, sem ter destruído boa parte da sua capacidade produtiva. Mesmo assim O PIB pode cair entre entre 3,7% e 5,7% nas projecções do Banco de Portugal, ou atingir mesmo os 20% no cenário mais pessimista da Universidade Católica.

Estamos a viver uma crise sem precedentes, para a qual faltam adjectivos. E estamos todos no mesmo barco, todos os países do mundo. Ser egoísta, por muito tentador que o seja, é irracional. Mais do que nunca a União Europeia tem aqui uma oportunidade para mostrar que consegue ser importante quando estão em causa funções centrais, como defender a saúde dos cidadãos e a sua vida depois da pandemia.