A conotação pejorativa do termo “populismo” é recurso regular do debate político para menosprezar o adversário. Sempre na ponta da língua de líderes e comentadores remata discussões e controvérsias como se depois de tal acusação, nada mais houvesse a dizer descido o nível intelectual ao mais baixo escalão das doutrinas.
A questão não é linear e tem sido associada ao aparente retrocesso da democracia. A ciência política chegou a acreditar que a democracia era uma conquista sem retorno, mas na última década levantaram-se dúvidas com a eleição de Donald Trump, com o Brexit e a vaga de populismos em todo o mundo, da Rússia de Putin à Turquia de Erdogan da Venezuela de Chávez e Maduro, ao Brasil de Bolsonaro. A ideologia populista, os partidos, o estilo e os líderes populistas estão em ascensão e o populismo é hoje uma buzzword no discurso político e mediático.
Mas afinal de que falamos quando falamos de populismo? Não sabemos ao certo. Há diversos sentidos e também sentido nenhum, dependendo do grau de hipocrisia do orador. Parece não existir uma definição teórica consensual, o populismo é, como costuma dizer-se em ciências sociais, um conceito essencialmente contestado. A expressão aplica-se às estratégias de aliciamento do povo que visam com ele estabelecer vínculo emocional, obtendo a sua simpatia, votos ou legitimidade
governativa. Ora tais estratégias são matrizes políticas gerais, especialmente em tempo de campanha eleitoral, sendo por isso despropositada a tentação de desclassificar o que agrada ao povo e dar-lhe rótulo fácil de populismo, como se interessasse à elite política subir um suposto patamar anti-populista, pois bem sabe que se o fizer desce à derrota eleitoral.
Depois de analisados os projectos a desilusão é grande, ainda assim, parece-nos lícito estabelecer os vínculos que bem entendermos, e, ninguém se abstenha de votar com receio de incrementar populismos, pois toda a prática política é puro exercício populista atrás da cortina de subterfúgios, eufemismos e meias palavras, que disfarçam a voracidade pelo poder validado nos canais da democracia representativa. A confusão entre popularidade e populismo é aqui intencional, porque assim é o discurso partidário – ambivalente, periclitante, com um pé em cada lado.
O estigma populista decorre do incremento da clivagem direita versus esquerda, crispação que aterroriza a opinião pública com o fantasma da ditadura, porém estes movimentos nascem no seio popular a partir dos sentimentos de desigualdade e constituem um corte no establishment. Em dado momento, o sistema vigente torna-se obsoleto e mostra incapacidade de responder às exigências sociais e reivindicações, que tendem a organizar-se num ponto de ruptura fora do sistema (“A razão Populista” Ernesto Laclau, 2013).
Entre nós o fenómeno “Chega” evidencia esta disposição, e, quer se queira quer não, ocupa o lugar vago deixado pelo descrédito nos partidos habituais, cuja lengalenga discursiva é esmagada pelo estilo enfant terrible de Ventura. Não obstante os exageros expressivos, teremos de lhe reconhecer sagacidade no aproveitamento do referido espaço, onde faz ecoar a voz descontente de uma crescente fatia do eleitorado, nauseado com os infindáveis “casos e casinhos”, terminologia usada pela candidata a Presidente da extrema esquerda, como sinónimos de demagogia.
A esquerda, defensora de um anti-populismo populista, indecisa nos ideários, oscila entre capitalismo encoberto e marxismo difuso, ainda ao estilo revolução Cubana, “companheiros, avante…”, dialética afastada da linguagem do tempo, que ignora as actuais aspirações e meios de realização humana. Assim se reduzem a ladainha argumentos válidos como a corrupção, as políticas de não reconhecimento do mérito e a redistribuição a partir de um sistema fiscal “confiscatório”, fórmulas desta estranha democracia que nos tem governado, onde os lugares de comando têm proteção tribal e invólucro de inconsequência.
Em tempo de sufrágio o debate socorre-se demasiado de pilares de integridade do passado, inspirações em João Paulo II, Sá Carneiro e outros, manobra de elevação moral das propostas a um padrão de retidão inexistente. Deixemos de procurar a integridade no passado. São necessárias novas referências, sem vaidade selfie, sem o atordoamento do glamour das câmaras, sem batom e sem demagogia Robles.
É necessário o encontro com a vergonha, que deveria regular os comportamentos do catador de lixo aos mais altos cargos de liderança. Foi no passado chave poderosa da vida quotidiana: “esses políticos deviam é ter vergonha na cara!” – diz o povo saudosista, repetindo um mantra que o redime e tranquiliza, mas vergonha é emoção extinta. Assim se sobe o pedestal do optimismo irritante, moldura das soluções ausentes, para dar uma espécie de aula para alunos estúpidos, que somos nós, seres de papelão, povo que tem medo das palavras e de intervir na aula, e se o fizer, incorre no crime de populismo.
Importa ponderar os significados da retórica política, e neles identificar as intenções que presidem aos Midas narcísicos, dispostos a falsificar tudo a todos, para que as circunstâncias espelhem o seu desejo, imagem e semelhança um eleitoralismo consentido, um populismo proibido.