1 Três (ou talvez cinco) distintos cronistas chamaram recentemente a atenção para um tema que poderá estar a passar despercebido entre nós, (talvez devido ao elevado ruído produzido por tribalismos rivais em torno de ideias nenhumas). Refiro-me ao tema crucial da política externa da União Europeia e dos seus surpreendentes gestos de aproximação relativamente à Rússia e à China.
O tema foi agora muito certeiramente recordado por Henrique Monteiro na sua habitual, e sempre muito estimulante, crónica na penúltima página da edição impressa do Expresso, neste caso na edição de sexta-feira passada (“Moscovo, Pequim e o papel de Portugal”). O autor recorda muito justamente dois outros excelentes cronistas que têm dedicado vários artigos àquele tema: Nuno Severiano Teixeira e Teresa de Sousa, ambos cronistas regulares do jornal Público. Talvez em rigor pudéssemos também acrescentar Miguel Monjardino (também cronista do Expresso) e José Milhazes, aqui no Observador.
2 O ponto de partida para as estimulantes reflexões daqueles autores foi a recente humilhação em Moscovo de Josep Borrell, um socialista espanhol que detém o título de Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança. O sr. Borrell foi de facto humilhado publicamente na conferência de imprensa conjunta com Sergey Lavrov, MNE da Rússia. Mas, antes mesmo dessa humilhação, havia uma pergunta de fundo: que foi fazer à Rússia o sr. Borrell, numa altura em que a ditadura de Moscovo reprimia brutalmente nas ruas centenas de milhares de manifestantes que protestavam contra a prisão ilegal do oposicionista Navalny?
3 Como se isto não bastasse, tinha havido também a assinatura de um Acordo entre a União Europeia e a ditadura comunista chinesa, poucas semanas antes da tomada de posse do novo Presidente norte-americano, Joe Biden.
A União Europeia tinha muito justamente criticado a errática política externa do general tapioca (também conhecido por Trump, Donald ou George, nunca me lembro ao certo). E tinha muito justamente denunciado a primitiva hostilidade do sr. Trump contra a NATO e, fundamentalmente, contra a aliança euro-americana que suporta a ordem liberal mundial desde o fim da II Guerra, em 1945, e a queda do Muro de Berlim, em 1989.
A inevitável pergunta que legitimamente emerge é a seguinte: tendo a União Europeia justamente criticado o isolacionismo do sr. Trump, por que motivo foi a UE assinar um acordo separado com a ditadura comunista chinesa pouco antes da tomada de posse do Presidente Biden, um enfático defensor da aliança transatlântica?
4 Não tenho informação factual para saber responder a estas perguntas. E seguramente não irei entrar em teorias da conspiração — que hoje alimentam as redes sociais (as quais, aliás, com muito prazer e orgulho elitista-liberal, não frequento).
Será seguramente relevante averiguar as razões factuais que levaram a União Europeia a estes dois erros clamorosos. Mas, julgo que, antes disso, é sobretudo importante recordar por que motivo devemos designar essas duas atitudes da União Europeia como erros clamorosos.
5 Este tema levar-nos-ia a uma longa reflexão política e, sobretudo, cultural, que não há aqui espaço para desenvolver. Mas é imperioso recordar pelo menos dois breves tópicos para reflexão ulterior.
Em primeiro lugar, deve ser recordado que a identidade europeia não é uma identidade geográfica. A Europa é, e sempre foi, uma península da chamada Euro-Asia. A emergência da Europa como entidade autónoma da Ásia é literalmente um milagre. Não resulta de factores materiais, ou de interesses de classe, ou identidades genéticas, (como a pobreza vulgar do marxismo e do nacional-socialismo nazi gostavam de pregar entre intelectuais semi-educados). A emergência da Europa resulta da emergência da Ideia de Liberdade Ordeira sob a Lei.
Esta Ideia de Liberdade sob a Lei é o milagre da Europa. Não foi ditada por nenhum poder político iluminado, nem por nenhum ‘plano central esclarecido’ (como talvez Hegel, ou Napoleão, ou Pombal, ou Hitler, ou Mussolini, ou Lenine, gostavam de acreditar), nem por qualquer burocracia competente (como os primitivos déspotas comunistas chineses de plantão acreditam, cegamente, como aliás é timbre da despótica e vulgar ditadura chinesa).
A Ideia de Europa não resultou de um plano centralmente desenhado. Na verdade, a ideia de Europa emergiu da rebeldia contra planos centrais desenhados e impostos por poderes políticos centrais que não prestam contas às pessoas. Em alternativa, emergiu gradualmente a ideia crucial de uma conversação descentralizada, gentil e moderada, entre tradições diferentes, em certa medida até rivais. Entre as vozes cruciais, nesta conversação definidora da identidade europeia, estão a tradição greco-romana, e a tradição judaica e cristã.
6 Há certamente diferenças e tensões entre essas tradições. Mas seguramente elas tinham em comum a crença (não positivisticamente provada) na dignidade da pessoa humana e no seu direto natural à vida, à liberdade, e à busca da felicidade. Este é o credo comum das democracias euro-americanas. A democracia americana é simplesmente a outra Europa, para além do Atlântico. É um milagre euro-americano, inspirado em ideais, não em planos centrais, nem em interesses, nem em classes, nem em raças. It is, indeed, an ideal ofequalitybeforethelaw — igualdade perante a lei, a que os Atenienses chamaram Isonomia, há 2500 anos.