1 Neste passado fim de semana, tive o prazer e o privilégio de retomar as minhas visitas anuais ao Colégio da Europa em Natolin, Varsóvia, para iniciar um breve ciclo de quatro palestras (online) sobre o pensamento político do século XX (que será concluído no próximo fim de semana). O tema não mereceria aqui particular destaque, não fosse o caso de o presente ano lectivo no Colégio da Europa ser dedicado a Mário Soares, fundador da democracia portuguesa e líder da adesão de Portugal à União Europeia em 1985 (então designada Comunidade Económica Europeia), com Rui Machete, Jaime Gama e Ernâni Lopes.

Tenho certamente inúmeras dívidas de gratidão para com Mário Soares, de quem tive o privilégio de ser assessor político no seu primeiro mandato presidencial, em 1986-1991 — bem como promotor de dois ciclos de conferências por ele presididos: “O Balanço do Século” (com Fernando Gil, em1987-88) e “A Invenção Democrática” (1996-97) [este último para assinalar o lançamento da sua Fundação Mário Soares, hoje Fundação Mário Soares e Maria Barroso].

2 Mas estes são obviamente detalhes. A minha infinita dívida de gratidão para com Mário Soares é a mesma de todos os Portugueses. Mário Soares liderou a fundação da democracia em Portugal e rompeu com a primitiva dicotomia entre ditaduras rivais — a do salazarismo e a do cunhalismo, a da “Revolução Nacional” e a da “Revolução Proletária”. Por outras palavras, Mário Soares simplesmente recusou a primitiva aliança dicotómica entre ditaduras e revoluções rivais — da direita primitiva e da esquerda primitiva — contra a democracia liberal civilizada, fundada no primado da lei, na economia de mercado e na concorrência parlamentar entre direita e esquerda democráticas.

Aquela dicotomia primitiva entre direita e esquerda autoritárias tinha sido derrotada na Europa Ocidental (embora infelizmente não na Europa Central e de Leste, sob ocupação da ditadura comunista soviética), após a vitória dos Aliados na II Guerra. Permaneceu, no entanto, por razões ainda hoje pouco claras, na peculiar Península Ibérica de Franco e Salazar — até às tardias transições democráticas de 1974 e 1975 (que deram início à famosa Terceira Vaga de democratização mundial). Mas é importante recordar que essa bizarra Ibérica aliança dicotómica entre direita e esquerda autoritárias, contra a democracia liberal e a economia de mercado, tinha dominado no plano intelectual as décadas de 1920 e 1930 na generalidade da Europa continental.

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3 Foi exactamente por aí — pela comum revolta primitiva de uma certa esquerda e de uma certa direita continentais, contra a tradição liberal do século XIX europeu — que comecei o meu ciclo de palestras no Colégio da Europa em Varsóvia. E por essa via procurei prestar homenagem a Mário Soares, que se opôs ao autoritarismo da direita e da esquerda primitivas.

Escolhi três autores para ilustrar a revolta do final do século XIX e início do século XX contra a tradição liberal do século XIX (em regra associada à Pax Britannica, também designada por “capitalista”, “liberal” e “parlamentarista”, emergente do Congresso de Viena de 1815 e da derrota do autoritarismo estatista napoleónico). Esses três autores anti-liberais e anti-capitalistas foram Karl Marx, Carl Schmitt e Benito Mussolini.

4 Não vou aqui cansar o leitor com as inúmeras citações daqueles autores que li aos meus alunos em Varsóvia. Mas gostaria de sublinhar que apenas li passagens de Marx, Schmitt e Mussolini. Não apresentei as minhas interpretações do que ele escreveram — simplesmente li passagens do que eles escreveram. E o resultado é simplesmente devastador. Todos advogaram, ainda que por motivos diferentes e com ‘nuances’ entre si (especialmente no caso de Schmitt), o “Estado total” contra o “estado liberal”. E todos atacaram o pluralismo parlamentar liberal, em nome de uma “vontade única” do estado total — em nome do povo, ou da nação, ou do colectivo, ou da igualdade, ou da eficiência, ou da chamada ciência da história.

Espero poder voltar aqui na próxima semana a este tema. E espero poder aqui revisitar alguns dos autores que no século XX responderam aos atavismos autoritários do início da século XX;  designadamente Walter Lippmann, Karl Popper, Raymond Aron, (que já abordei na segunda sessão online deste fim de semana); Friedrich Hayek, Michael Oakeshott, Isaiah Berlin e Ralf Dahrendorf (que conto poder abordar no próximo fim de semana).

Postscriptum: Homenagem ao Duque de Edimburgo A notícia da morte de Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, na passada sexta-feira, foi recebida com profunda comoção no Reino Unido, mas também na Austrália e no Canadá, bem como noutras democracias de língua inglesa.

Esta genuína comoção popular é dificilmente compreensível em culturas políticas revolucionárias — habituadas a entender a vida política como uma guerra tribal de uns grupos contra outros, cada um deles aspirando à supremacia sobre os outros — geralmente em nome das suas “verdades” particulares, quando não simplesmente dos seus interesses, que em regra entendem como excluindo os dos outros.

Este certamente não é o caso da “living constitution” britânica (aliás não escrita), que se funda na estrita observância por todos de regras gerais de boa conduta, escritas ou não escritas na lei. Esta observância é entendida como regra de ouro para impedir o despotismo do capricho da vontade arbitrária de um, de alguns ou mesmo de todos reunidos em colectivo. A família real britânica, liderada pela Rainha, apoiada pelo príncipe consorte, o Duque de Edimburgo, exprimem a unidade nacional neste sentido de dever de observância de regras imparciais de boa conduta, supra-partidárias e independentes de interesses particulares.

Nunca esquecerei uma conversa intensa com Karl Popper no Estoril, em 1987, quando ele literalmente me mandou estudar em Inglaterra. Disse Sir Karl Popper (nascido em Viena, exilado na Nova Zelândia em 1937, regressado a casa em Londres, em 1946):

“Existe um mistério britânico que ninguém sabe decifrar: é o mistério de uma democracia liberal que existe pelo menos desde 1688, sem nunca ceder às ditaduras que entretanto ocorreram no continente. Esse mistério não poderá ser investigado sem ter em conta o conceito britânico de ‘gentlemanship’: someone who does not take himself too seriously but who is prepared to take his duties very seriously, especially when most people around him are talking mainly about their rights”.

Tenho de confessar que foi com comoção que li em inúmeras homenagens a Príncipe Filipe esta mesma ideia de Karl Popper sobre gentlemanship. Apenas um exemplo do editorial do Telegraph de domingo. “He embodied a breed that was always deadly serious about what they did, if not always serious about themselves”.